terça-feira, 20 de maio de 2008

0398) O telefone de Gilberto Braga (29.6.2004)



(A Arca Russa, de Alexander Sokurov, Rússia, 2002)


Numa entrevista de semanas atrás, Gilberto Braga, o autor de “Celebridades”, comentou: “Recentemente eu fui criticado porque alguns personagens procuram outros pessoalmente quando na vida real se telefonariam. Respeito a crítica, mas não me acho errado. Se a gente escrever realisticamente, cada personagem vai passar metade de seu tempo ao telefone.” GB está coberto de razão. Discute-se muito o que é ou não realista na arte da narrativa, mas raras vezes se desce a este nível de detalhe quase imperceptível. E é justamente daí que brota grande parte da impressão de realismo passada ao leitor ou espectador.

O Realismo é uma otimização do que acontece na vida real, e não uma transposição passiva. É uma otimização no sentido de ganhar tempo, de simplificar ações a bem da fluência narrativa, ou de omitir os momentos em que nada acontece. Esta otimização também implica em abrir mão de situações verossímeis, mas entediantes, e substituí-las por situações que não são bem o que aconteceriam na vida real, mas rendem mais em termos dramatúrgicos. O próprio GB justifica sua escolha dizendo que faz assim “para que a cena saia mais agradável de se ver.”

A Arte da Narrativa (cinema, teatro, romance, etc.) está para a vida real assim como os “Melhores Momentos” estão para os 90 minutos de um jogo de futebol. A Narrativa é sempre um encadeamento do que teria acontecido de relevante naquela história, entremeado com alguns momentos banais para dar efeito de ritmo e de contraste. Nunca é uma transcrição ao pé da letra da vida real. Claro que já se fizeram muitas tentativas de “realismo ao pé da letra”. Há filmes em tempo real, ou seja, filmes que duram na tela o mesmo tempo dos acontecimentos narrados; mas mesmo isto só é conseguido subindo-se a um degrau mais alto de artificialismo. Matar ou Morrer, o faroeste clássico de Fred Zinemann, é um filme minuciosamente escrito e montado de propósito para durar uma hora e meia, o tempo exato de duração da história. O recente A Arca Russa mostra um plano-seqüência de uma hora e meia ao longo do Museu Hermitage, mas tudo que acontece ali mostra uma orquestração de esforços de complexidade quase inimaginável. Ou seja: aquilo não é a-vida-como-ela-é. É tudo muito menos realista do que “Celebridades”.

Um dos paradoxos mais curiosos da Narrativa é esta necessidade de artificializar as coisas para que elas pareçam naturais. Vemos um filme com olhos diferentes dos que usamos para ver a rua por onde caminhamos todos os dias. Se os personagens da novela ficassem falando ao telefone o tempo todo as cenas não seriam apenas menos agradáveis de ver: elas nos passaram a impressão de uma realidade diluída, frouxa, sem dinamismo. Esperamos de uma Narrativa, mesmo a de um novelão de TV, uma certa compactação de ações, de tempos e de espaços. Narrar é cortar 90% e encadear os 10% que nos dêem a ilusão de ter visto o total.

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