Em 1968, o poeta Hermínio Bello de Carvalho fez uma visita ao Morro da Mangueira. Deslumbrado com a belíssima visão do casario, das pessoas e da paisagem carioca, começou a escrever um poema sobre o que tinha visto.
Aí recebeu a visita de Paulinho da Viola, portelense de coração. Ao ler os versos, Paulinho se emocionou tanto que pediu para musicá-los, mesmo sendo eles em homenagem à escola rival. Nasceu assim um dos sambas mais bonitos de todos os tempos, “Sei lá Mangueira”:
“Vista assim do alto, mais parece um céu no chão... Sei lá... Em Mangueira a poesia feito um mar se alastrou, e a beleza do lugar, pra se entender, tem que se achar que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais. Que os olhos não conseguem perceber, que as mãos não ousam tocar, que os pés recusam pisar...”
Fast-forward no botão do Tempo. Em 1981, o poeta Paulo César Pinheiro é casado com a cantora Clara Nunes. Mangueirense de coração, ele precisa atender a um pedido da esposa, que é Portela: um samba para a escola azul-e-branca.
A idéia salvadora lhe vem ao olhar o pequeno oratório para Nossa Senhora Aparecida que a própria Clara tem em casa. Ele nota que as cores da santa são o mesmo azul-e-branco da Portela, e que a imagem do Espírito Santo é uma “rima” perfeita para a águia, símbolo da Escola.
E aí surge “Portela na Avenida”, um samba belíssimo que hoje é, ao lado de “Foi um rio que passou na minha vida”, de Paulinho da Viola, uma espécie de hino não-oficial da Escola:
“Portela, eu nunca vi coisa mais bela, quando ela pisa a passarela e vai entrando na avenida... Parece a maravilha de aquarela que surgiu: o manto azul da Padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida...”
No Rio, essa coisa de Escola de Samba é levada a sério mesmo, tanto quanto o futebol. É como uma religião ou um patriotismo. O que leva um portelense roxo como Paulinho da Viola a querer participar, por pura emoção, de um samba que exalta a sua maior rival, a Mangueira? O que leva um mangueirense como Paulo César Pinheiro a louvar a escola rival de uma tal maneira?
É como um vascaíno compor uma música exaltando o Flamengo, ou vice-versa. Pode-se dizer que são compositores profissionais e vêem a possibilidade de emplacar um grande sucesso, e por outro lado estão atendendo a pedidos de pessoas queridas. Mas isto não explica tudo.
Creio que ambos os compositores amam suas escolas, mas acima delas amam o samba e tudo que o samba representa. Mangueira e Portela são imagens visíveis de algo que não se vê mas que está presente na teia de relações humanas e afetivas, nos laços de parentesco e de vizinhança, na história de um bairro ou de uma rua, na memória racial compartilhada por uma comunidade inteira.
Garotos descobrem isto através das cores de suas Escolas de Samba, e elas deixam de ser simples escolas, tornam-se portas para uma Pátria que é possível ver e compreender por inteiro.
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