sábado, 19 de abril de 2025

5172) Fingir até fazer (19.4.2025)



 
A língua inglesa tem uma dessas expressões que valem tanto pela simetria sonora quanto pela simetria do conteúdo. 
 
Fake it till you make it, dizem eles. O sentido seria mais ou menos: “finja que sabe fazer, até ser capaz de fazer de verdade”. 
 
Bate com uma frase que cunhei há muitos anos, e que tangencia o mesmo assunto: “Fingir que sabe – mas saber que finge”. Porque tem muito indivíduo por aí que “tira onda” de conhecedor de um assunto (principalmente quando está na frente de gente leiga) mas se entusiasma muito com alguns sucessos parciais, e acaba acreditando que entende mesmo daquilo. 
 
Há um mico à sua espera quando ele menos estiver esperando. 
 
E na verdade o conselho dos ingleses é bom, porque a gente não pode esperar para praticar uma atividade somente quando tiver mestrado, doutorado e pós-doc naquilo. Tem que começar a meter a mão na massa enquanto aprende, porque na verdade a gente nunca pára de aprender, e a certa altura do trajeto tem que começar a fazer, e até mesmo começar a ensinar – sem ter aprendido tudo. 
 
Esse aparente paradoxo deve estar na origem da famosa “Síndrome do Impostor” que acomete muita gente. “Eu não sou músico, juro! Eu apenas faço esses barulhos, as pessoas acham interessante, e até me pagam para isso!” “Eu não sou escritor, mas o público compra meus livros, o que hei de fazer?”. “Eu não interpreto personagem nenhum, eu decoro as falas, subo no palco e sou eu mesmo toda vez.” 
 
Ou o sempre sincero Raul Seixas, que dizia: “Na verdade, acho que eu sou um ótimo ator, porque finjo que sou cantor e todo mundo acredita”. 
 
Raul fingiu até fazer, e tantos e tantos outros, antes e depois dele. 
 
E não se trata apenas de fingir que é artista. Um dos melhores filmes de Roberto Rossellini é Il Generale Della Rovere, onde um sujeito meio picareta, meio charlatão (Vittorio de Sicca), vai parar na cadeia durante uma guerra e ali é confundido (por semelhança física e outros mal-entendidos) com um general que chefia as tropas revolucionárias. Todos começam a se entusiasmar com sua presença. Ele assume o papel, e no final acaba sendo condenado à morte, mas sustenta a farsa até o final, porque percebe o quanto aquela falsa identidade tornou-se importante para manter a fé daqueles prisioneiros. 




Há um belo conto (“Tempest”) da sempre inesperada Karen Blixen (“Isak Dinesen”) em que um grupo de teatro dinamarquês viaja de barco para montar peças de Shakespeare. O barco é atingido à noite por uma tempestade feroz. Uma das atrizes, jovem e inexperiente, demonstra uma valentia inesperada, e comanda a tripulação, exortando-a a lutar mais, animando-a quando estão exaustos. Depois, aclamada como heroína, ela mesma confessa que fez tudo aquilo porque pensou que estava numa peça. Pensou que era fake, pois aquilo era tão irreal (para alguém jovem e inexperiente como ela) que não podia estar acontecendo de verdade. 
 
E também acontece o contrário. 
 
O excesso de responsabilidade de quem se sabe “de verdade” (um artista consagrado, um expert, um scholar de respeito etc.) muitas vezes é tão inibitório quanto a Síndrome do Impostor. Certos indivíduos não se acham impostores, pelo contrário: sabem que são “a coisa de verdade”, sabem que são sumidades, autoridades, são aquele indivíduo capaz de dar a última e definitiva palavra sobre o assunto. 
 
E nesse instante – olha só o paradoxo – o sujeito trava. Ele sabe que não é fake, mas justamente por isso a angústia da responsabilidade o paralisa. O mundo real depende de uma palavra sua, e o peso dessa credibilidade acaba por travar sua mente bem como "o mulambo da língua paralítica”. 
 
E, na mesma linha de paradoxo, um não-ator pode se sentir mais leve no palco, porque se atuar mal e for desmascarado resta-lhe dar de ombros e dizer: “Mas quem disse que eu sou ator?”. E sair assobiando. (Uma situação explorada em variadas nuances no excelente romance Scaramouche de Rafael Sabatini, em que um fugitivo político se junta a uma trupe teatral e faz de conta que é ator.) 



 
Já vi atores experimentados dizendo em dia de estréia aos nervosíssimos novatos: “Gente, calma, é só uma peça, vamos nos divertir... se alguém errar, a gente dá um jeito na hora, e no dia seguinte faz certo. É só uma peça. O mundo não vai se acabar.” 
 
Só falta dizer: “Faça de conta que sabe. Ou então faça de conta que aquilo é só uma brincadeira, um passatempo, sem grande responsabilidade.” 


 
Um jogo que na verdade não é um jogo. Como no romance Ender’s Game de Orson Scott Card, em que um garoto que é “fera” no videogame trava batalhas espaciais ferozes, imaginando que é apenas um game – mas é uma batalha real contra inimigos reais, que ele extermina sem pena. Ora, não é somente um jogo?... Era de verdade?!... Eu exterminei uma raça inteira? 
 
“Fingir que é” equivale a “ser”? Não; mas em alguns casos pode se tornar um caminho para ficar sendo. 




Para mim, a filosofia do “fake it till you make it” tem um peso existencialista, cheio de liberdade e responsabilidade. Ninguém nasce alguma coisa: a gente se torna aquela coisa, primeiro imitando (ou fingindo) e depois fazendo de verdade. Todo mundo é assim. 
 
Não existe uma “missão”, um “sentido prévio para a vida”. As pessoas se angustiam tentando descobrir qual é o sentido da nossa existência. Não existe um sentido pronto, para ser descoberto: existe um vácuo, onde temos a liberdade (e a responsabilidade) de inventar um sentido para nossa vida. 
 
A gente começa a inventar (“to fake”) um sentido qualquer. Sou jogador de futebol. E descobre que não é. Sou músico... e descobre que não é. Sou motorista de ônibus... e descobre que não é. De repente... sou técnico de informática: aí você descobre que é facílimo fingir, porque você entende tudo daquilo, começa como técnico, daqui a poucos anos está com uma empresa, doze empregados, casa financiada e carro na porta. Pronto. Você inventou, depois de várias tentativas, um sentido para sua existência. Nada disto estava pronto. 
 
Nada está pronto à nossa espera. Nada está escrito nas estrelas. Existem tendências, pesos, influências, convergências de oportunidades, relações sociais, o escambau – tudo influenciando suas escolhas. Mas nada está escrito. Aprender a fazer é, em certa medida, fingir que já sabe, e criar o destino. 
 
 
 
 
 
 




2 comentários:

Anônimo disse...

Que show de reflexão

Fernando Antônio Ribeiro de Gusmão disse...

Muito bom, ê por aí…