(Richard Burton como “Alec Leamas” em “The spy who came in from the cold”)
O romance de espionagem (e também o conto, o filme, etc.), como forma de narrativa policial, eleva ao quadrado a paranóia existente no policial clássico – onde há um crime e, em princípio, qualquer um pode ser o culpado.
Essa questão de “Meu País, Certo ou Errado” está ficando um pouco superada. Hoje estamos combatendo o comunismo. Muito bem. Se eu estivesse vivo cinquenta anos atrás, o tipo de conservadorismo que temos hoje bem que poderia ser chamado de comunismo, e nós receberíamos ordens de combatê-lo. A História está avançando muito rápido nos dias de hoje. Heróis e vilões trocam de lugar o tempo todo.(Ian Fleming, Internet Movie Database, trad. BT)
Podemos acreditar que um detetive comum tem convicções
religiosas – o Padre Brown (de G. K. Chesterton), por exemplo. Um espião as
tem? Gostaria de acompanhar suas aventuras. Mesmo as histórias de espionagem que
envolvem, por exemplo, agentes judeus e muçulmanos (como A Garota do Tambor) faz com que o lado religioso seja minimizado
pelo imperativo cego, massacrante e onipotente da guerra política.
A Política Internacional passa por cima o tempo inteiro
das meras leis de governos locais; é um Poder acima dos poderes, uma Lei acima
de todas as leis.
O mundo não se divide em preto e branco. É mais para preto e cinza.(Graham Greene, The Observer, 1983, trad. BT)
O que diabo você pensa que são os espiões: filósofos morais, comparando cada ação sua com as palavras de Deus ou de Karl Marx? Não são! São apenas um bando de bastardos sujos e esquálidos como eu: gente pequena, uns bêbados, uns viados, uns maridos manobrados pela esposa, funcionários civis brincando de cowboy-e-índio para dar uma esquentada nas suas vidinhas podres. Você acha que eles sentam como monges numa cela, comparando o certo e o errado? Ontem eu teria assassinado Mundt porque acho que ele é um sujeito mau e um inimigo. Mas não hoje. Hoje ele é um sujeito mau e é meu amigo. Londres precisa dele. Precisa dele para que o gado, a massa idiotizada que você tanto admira, possa dormir em paz nas suas caminhas cheias de pulgas. Precisa dele para a segurança de gente ordinária e encardida como você e eu.(Alec Leamas, em O Espião Que Veio Do Frio, John Le Carré, filme de Martin Ritt)
A recente e ótima série de TV Slow Horses (Apple-TV, baseada nos romances de Mick Herron)
introduz um interessante condimento nessa situação. Os “pangarés” (ou cavalos
vagarosos) são agentes do Serviço de Segurança Britânico, o MI-5, cujo inimigo
mais imediato é o próprio MI-5.
Eles são agentes “desqualificados” e colocados na
“geladeira”. Cada um deles fez, um dia, alguma
burrada monumental, comprometeu seu currículo para o resto da vida, mas não
pode simplesmente ser expulso do Serviço. Vai para esse departamento, cujo nome
oficial é “Slough House” (nome da série de livros) , um misto de punição burocrática
e Purgatório.
Ali trabalha uma dúzia de pessoas revoltadas, feridas, amargas,
alguns querendo se redimir diante do Serviço, mas outros sentindo um prazer
perverso em bater de frente com ele. É o caso de Jackson Lamb (Gary Oldman), o
chefe do grupo, que se refestela na marginalidade e constantemente trata o
Serviço como se fosse uma potência estrangeira cujos “podres” ele precisa desenterrar.
A série é excelente em roteiro e interpretações ao elenco
(já está na quarta temporada, todas muito boas) e coloca um viés novo (para
mim, pelo menos) no gênero. Um viés que
radicaliza a paranóia constante de que “um amigo pode se revelar um inimigo”.
Aqui, os primeiros inimigos dos “slow horses” são as pessoas para as quais eles
trabalham.
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