terça-feira, 15 de abril de 2025

5171) A arte sórdida da espionagem (15.4.2025)



 
(Richard Burton como “Alec Leamas” em “The spy who came in from the cold”)
 
 
O romance de espionagem (e também o conto, o filme, etc.), como forma de narrativa policial, eleva ao quadrado a paranóia existente no policial clássico – onde há um crime e, em princípio, qualquer um pode ser o culpado. 
 
Jorges Luis Borges, numa conferência famosa sobre este tema, comentava que a literatura policial criou não só um novo gênero literário, mas um novo tipo de leitor: o Leitor Desconfiado. Esse leitor suspeita de todos os personagens, põe em dúvida cada frase que é pronunciada, acha o tempo todo que o autor está tentando enganá-lo (e está mesmo). 
 
No livro de espionagem, porém, não se trata de descobrir um criminoso que cometeu um crime. Trata-se de descobrir, no vasto elenco de personagens, quem são os inimigos, os agentes secretos da potência estrangeira, dos quais o protagonista tem que se esquivar, mas para isso precisa identificá-los primeiro. 
 
Na história de espionagem, todo mundo pode se tornar uma vítima, todo mundo pode ser um criminoso. O trabalho do espião, ou do agente secreto, é duplo. 




Ele age como detetive quando precisa vigiar os passos de alguém, seguir um suspeito, decifrar uma mensagem, interpretar um código, conseguir entrar num ambiente e enxergar pistas sobre o que acontece ali, imaginar que são as pessoas inocentes e quem são os “culpados” (= adversários). 
 
E ele age como criminoso quando se protege atrás de uma identidade secreta, se esforça para não ser identificado pelos inimigos, vigia-se o tempo inteiro para ver se não está sendo observado, gravado, fotografado, seguido na rua... E quando age, faz o que pode para apagar as pistas de suas ações. 
 
No romance policial tradicional, há dois conceitos para definir o que é crime, elemento importante no gênero. 
 
O primeiro é o conceito filosófico-religioso: o conflito entre o Bem e o Mal. Um conflito moral, no qual (basicamente) o crime é uma ação influenciada pelo Mal, e cabe ao Bem identificá-la e puni-la. (E os autores, é claro, fazem mil variações e inversões desse princípio.) 
 
O segundo é a lei dos homens: o ordenamento civil-jurídico da sociedade onde a história acontece. Cada país fornece uma moldura específica onde as histórias (as histórias escritas a sério, pelo menos) precisam se situar. Cada país define a natureza dos crimes, como podem se dar as prisões, os julgamentos, as condenações, a execução da sentenças. Atos que são criminosos em um país podem ser aceitos em outros. O poder da polícia é temido e respeitado num lugar, mas pode ser frouxo e corrompido no país vizinho. E assim por diante. 
 
Quando lemos ou escrevemos uma história assim, há sempre questões imprevistas que muitos autores esquecem de levar em conta. Nessa cidade (nesse país) existe policia científica (capaz de recolher impressões digitais, p. ex.)?  É permitido interrogar qualquer suspeito?  Existe crime organizado e politicamente forte? São questões sociais que a literatura de cada país aborda de uma maneira diferente, o que se reflete na trama, nos personagens, etc. 
 



(Robert Flemyng como “Samuel Fennan” e James Mason como “Charles Dobbs” aka “George Smiley”, em Chamada Para Um Morto, de Sidney Lumet)


 
Mas... o romance de espionagem traz o leitor para uma terceira moldura, que é a Política Internacional – mais imperativa e poderosa do que meras leis federais, e mais implacável do que qualquer preceito filosófico-religioso, pois ela redefine os conceitos de Bem e Mal como lhe convém. 
 
Essa questão de “Meu País, Certo ou Errado” está ficando um pouco superada. Hoje estamos combatendo o comunismo. Muito bem. Se eu estivesse vivo cinquenta anos atrás, o tipo de conservadorismo que temos hoje bem que poderia ser chamado de comunismo, e nós receberíamos ordens de combatê-lo. A História está avançando muito rápido nos dias de hoje. Heróis e vilões trocam de lugar o tempo todo. 
(Ian Fleming, Internet Movie Database, trad. BT) 
 
Podemos acreditar que um detetive comum tem convicções religiosas – o Padre Brown (de G. K. Chesterton), por exemplo. Um espião as tem? Gostaria de acompanhar suas aventuras. Mesmo as histórias de espionagem que envolvem, por exemplo, agentes judeus e muçulmanos (como A Garota do Tambor) faz com que o lado religioso seja minimizado pelo imperativo cego, massacrante e onipotente da guerra política. 
 
A Política Internacional passa por cima o tempo inteiro das meras leis de governos locais; é um Poder acima dos poderes, uma Lei acima de todas as leis.
 
O mundo não se divide em preto e branco. É mais para preto e cinza.
(Graham Greene, The Observer, 1983, trad. BT)
 
E curiosamente isto transforma o universo da espionagem, como um todo, num universo sem Deus mas carregado de culpas, onde o disfarce e a mentira são procedimentos obrigatórios, onde nenhuma amizade, nenhuma aliança, nenhuma relação pessoal está a salvo da dúvida. Um universo onde reina a paranóia. Todos estão mentindo. Todos são culpados. Todos podem estar apenas esperando a chance de me apunhalar pelas costas – ou de usar a ponteira envenenada de um guarda-chuva para atingir minha perna em plena rua. 



 
O que diabo você pensa que são os espiões: filósofos morais, comparando cada ação sua com as palavras de Deus ou de Karl Marx? Não são!  São apenas um bando de bastardos sujos e esquálidos como eu: gente pequena, uns bêbados, uns viados, uns maridos manobrados pela esposa, funcionários civis brincando de cowboy-e-índio para dar uma esquentada nas suas vidinhas podres. Você acha que eles sentam como monges numa cela, comparando o certo e o errado? Ontem eu teria assassinado Mundt porque acho que ele é um sujeito mau e um inimigo. Mas não hoje. Hoje ele é um sujeito mau e é meu amigo. Londres precisa dele. Precisa dele para que o gado, a massa idiotizada que você tanto admira, possa dormir em paz nas suas caminhas cheias de pulgas. Precisa dele para a segurança de gente ordinária e encardida como você e eu. 
(Alec Leamas, em O Espião Que Veio Do Frio, John Le Carré, filme de Martin Ritt)
 


 
A recente e ótima série de TV Slow Horses (Apple-TV, baseada nos romances de Mick Herron) introduz um interessante condimento nessa situação. Os “pangarés” (ou cavalos vagarosos) são agentes do Serviço de Segurança Britânico, o MI-5, cujo inimigo mais imediato é o próprio MI-5. 
 
Eles são agentes “desqualificados” e colocados na “geladeira”.  Cada um deles fez, um dia, alguma burrada monumental, comprometeu seu currículo para o resto da vida, mas não pode simplesmente ser expulso do Serviço. Vai para esse departamento, cujo nome oficial é “Slough House” (nome da série de livros) , um misto de punição burocrática e Purgatório. 
 
Ali trabalha uma dúzia de pessoas revoltadas, feridas, amargas, alguns querendo se redimir diante do Serviço, mas outros sentindo um prazer perverso em bater de frente com ele. É o caso de Jackson Lamb (Gary Oldman), o chefe do grupo, que se refestela na marginalidade e constantemente trata o Serviço como se fosse uma potência estrangeira cujos “podres” ele precisa desenterrar. 
 
A série é excelente em roteiro e interpretações ao elenco (já está na quarta temporada, todas muito boas) e coloca um viés novo (para mim, pelo menos) no gênero.  Um viés que radicaliza a paranóia constante de que “um amigo pode se revelar um inimigo”. Aqui, os primeiros inimigos dos “slow horses” são as pessoas para as quais eles trabalham. 
 
 
 
 




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