5139) Notícias do fim do mundo (3.1.2025)
O algoritmo do inconsciente me fez visitar estes dias,
como por acaso, filmes que têm como tema o Fim do Mundo.
Não era esse tema que eu estava procurando; eram outros
detalhes, diferentes em cada filme, mas bastavam alguns minutos de bola rolando
para que eu percebesse o tema botando a cabeça por cima do muro.
Bem – fim de ano e fim do mundo podem não ser sinônimos,
mas também não são opostos. Tudo nos deixa uma lição.
Caiu-me nas mãos uma cópia de A Hora Final (“On the Beach”, 1959), filme de Stanley Kramer que eu
nunca tinha visto e resolvi ver agora. Lembro que naquela época era um filme
comentado lá em casa, pelos amigos que visitavam meus pais.
Falava-se dele em tom sério – era a história de um grupo
de pessoas numa praia, esperando o fim do mundo devido à guerra atômica.
Provavelmente foi a primeira vez (eu teria 9 ou 10 anos) em que ouvi falar
nisto pra valer.
O filme de Kramer é correto, bem narrado para a época.
Quando começa, a II Guerra já aconteceu e destruiu praticamente toda a vida no
Hemisfério Norte. A história se passa na Austrália. A tripulação de um
submarino é recebida pela população local, e começam todos a se preparar para a
chegada da “nuvem radioativa” que vai exterminar a população do último
continente.
Gregory Peck desfila sua canastrice habitual, como o
capitão do submarino. É um ator solene e inexpressivo, que parece talhado para
o Monte Rushmore. Quem surpreende é Fred Astaire, no papel de um cientista
fascinado por carros de corrida – ao que se diz, é seu primeiro papel
não-musical no cinema. Ava Gardner faz o papel de mulher-solteira-em-crise-que-bebe-todo-dia
e não se sai mal. Anthony Perkins faz aquele papel loquaz e desassossegado de
sempre, o cara angustiado e sorridente que não pára quieto.
(Fred Astaire, Gregory Peck, Ava Gardner)
O submarino vara o Oceano Pacífico e vai até San
Francisco, apenas para constatar que não há uma pessoa viva sequer.
Curiosamente, as ruas estão todas vazias – não há corpos, carros batidos, casas
incendiadas. Nada. É como se em vez de uma nuvem radioativa a cidade tivesse
sido atingida por uma bomba de nêutrons, que varreu do mapa as pessoas e deixou
tudo intacto.
O filme na verdade tem como tema principal a eutanásia.
Já que vamos morrer mesmo (dizem as pessoas) melhor escolhermos uma morte
rápida e simples, do que esperar pelos efeitos da radioatividade, mais
demorados e mais dolorosos. E perto do final há uma cena arrepiante, nas ruas
de Melbourne, em que as famílias, rebocando suas crianças, fazem fila para
receber sua cota de comprimidos para a “morte voluntária”.
Não houve como não lembrar de Melancolia (2011) de Lars von Trier, que também só vi pela primeira
vez alguns dias atrás. Desta vez, o fim do mundo vem sob a forma de um
planetóide em rota de colisão com a Terra. Toda a história transcorre na
casa-de-campo, ou melhor, no castelo de uma família rica, que se reúne para
festejar o casamento de uma das filhas.
Melancolia foi
comentado na época como o melhor expoente de um novo gênero cinematográfico, o
“Vem, Meteoro!” – filmes em que o fim do mundo é descrito do ponto de vista de
personagens tão desagradáveis que a platéia acaba torcendo para que o meteoro
chegue logo.
No caso do filme de Von Trier, a sequência inicial, com
algo de comédia pastelão, dá o tom da extinção da humanidade. O casal de noivos
resolve ir para a festa do casamento numa daquelas limusines quilométricas, ostentatórias,
e somente no trajeto (pelo meio de bosques, riachos, etc.) eles percebem que a
limusine não consegue manobrar na estrada de terra. O casal vai a pé, e quando
chega na mansão (com horas de atraso) o clima não é dos melhores.
Toda a primeira metade do filme é a tensa e insuportável
festa de casamento. Um lado positivo do cinema de Lars Von Trier é que ele não
liga a mínima para aquela máxima do cinema norte-americano de que é preciso
haver personagens com quem a platéia simpatize. No presente caso, é difícil. A
metade do filme dedicada ao casamento lembra outro filme dinamarquês, Festa de Família (1998) de Thomas
Winterberg, uma viagem nelsonrodriguiana aos segredos de uma família rica.
Melancholia,
que acontece todo nos domínios de um castelo, mostra um grupo de pessoas
neuróticas lamentando o fim de um mundo onde eles se deram tão bem e vivem tão
mal. Não há notícias do que acontece lá fora, não se vê cenas em outras cidades
pelo mundo, outras pessoas, nem mesmo os castelos vizinhos. É um mundo fechado em
si mesmo, de onde ninguém consegue fugir, e nisto o filme lembra O Anjo Exterminador (1962) de Luís
Buñuel.
É também numa casa de campo, distante de tudo, que
acontece toda a ação de O Sacrifício (“Offret”,
1986), o último filme de Andrei Tarkovsky. É a casa – modesta, se comparada com
o castelo do filme dinamarquês – onde vive o casal de ex-atores Alexander e
Adelaide, com seus filhos e criados, e onde recebem a visita do médico Viktor e
do carteiro (e colecionador de fatos bizarros) Hugo.
O filme tem uma curiosidade a mais, que não passou em
branco pela crítica. Tarkovsky àquela altura (aos 54 anos) estava em choque
permanente com o governo soviético, e este seu último filme foi feito na
Suécia, aproveitando atores e técnicos que trabalhavam com Ingmar Bergman. É de
certo modo um filme de Bergman feito por um discípulo. Há muitas diferenças
entre o cinema dos dois, mas O Sacrifício
anula a maior parte delas.
Reunida na casa de campo, a família toma conhecimento de
que bombardeiros nucleares estão voando pelo mundo, prontos para iniciar a III
Guerra Mundial. (Vi aqui alguns ecos de Vergonha,
1968, de Bergman.) Bate o desespero em todos. E entra aqui um fator ausente em A Hora Final
e em Melancolia: a religião. A Hora Final fala apenas de ciência e
política; Melancolia é em torno de
uma fatalidade astronômica. Mas O
Sacrifício dá uma guinada, em seu terço final, na direção religiosa.
Alexander, que se afirma ateu ou agnóstico, mas de
qualquer modo indiferente à noção de Deus, cede ao desespero e reza. Promete destruir
aquela casa (que ele ama mais que tudo), afastar-se de sua família e da vida, contanto
que a guerra seja cancelada e a Humanidade escape mais uma vez. E cabe a Hugo,
o amigo que coleciona ocorrências sobrenaturais, dizer-lhe que seus desejos
podem ser atendidos caso ele convença a criada Maria (que é tida como bruxa) a
fazer sexo com ele.
Parece uma missão impossível, mas Alexander consegue. Na
manhã seguinte, tudo volta ao normal, energia elétrica e telecomunicações são
restabelecidas, o susto da III Guerra passou.
E a última sequência do filme mostra como ele despista a
família, afastando-a noutra direção, e depois toca fogo à casa. Uma cena
justamente famosa, num plano com mais de seis minutos, em que a casa é
totalmente destruída pelo fogo enquanto ele corre de um lado para o outro,
desorientado.
O filme de Tarkovsky é sobre um milagre (uma prece
improvavelmente atendida) e sobre um sacrifício, porque segundo ele não se pode
pedir algo grande a Deus sem oferecer algo também grande em troca. Tarkovsky
era um indivíduo curioso, de forte crença espiritual (como se vê no seu livro Esculpindo o Tempo). Tinha aquele
misticismo russo, algo entranhado no inconsciente coletivo ao longo de milênios
cheios de céus, infernos e invernos.
O Sacrifício
mostra um milagre, o cancelamento repentino e não-explicado da guerra mundial.
Mostra-o de maneira seca, sem fanfarras ou melodramas; mostra como Carl T.
Dreyer mostra a ressurreição milagrosa da mulher no final de Ordet (1955): como um fato que não
precisa de outra justificação além de ter acontecido.
No mundo de Tarkovsky, o fim do mundo pode ser evitado
pelo ato de fé absoluta (e pelo sacrifício absoluto) de uma única pessoa em
todo o planeta. Como se bastasse a fé sincera de um só, para salvar oito
bilhões.
A certa altura do filme, o filho de Alexander prepara
para ele um presente de aniversário: uma maquete da casa deles, uma réplica
perfeita em tamanho menor. Essa réplica sobrevive à destruição da casa
verdadeira, e de certo modo acena com a possibilidade de que a destruição do
mundo do pai não implique na destruição do mundo do filho. Tanto é assim que na
cena final o menino mudo (tinha feito uma operação na garganta) volta a falar,
e a árvore seca que ele e o pai replantaram dá sinais de vida.
O mundo não vai se acabar, dizem esses filmes. No máximo,
acaba-se o mundinho de cada um.
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