segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

5140) O "Ulysses" e suas odisséias (6.1.2025)




 
The book, pra variar, is on the table. 
 
Por variados motivos andei catando milho nas páginas do Ulisses de James Joyce, que infelizmente não tenho em papelivro – tenho cópia eletrônica (PDF) da edição em inglês, e também da tradução de Caetano W. Galindo, de quem já acompanhei com proveito palestras e entrevistas. Gosto do formato literatrônico, que tem a grande vantagem de buscar trechos específicos com velocidade Aladínica. 
 
Ulisses é um livro onde se aprende muito, se a gente abre mão da obrigação de entender tudo. Ou de lê-lo por inteiro. Alguém já viu o Louvre por inteiro? Já viu o MoMa por inteiro, ou até mesmo nosso querido MAM carioca por inteiro? Não. Esses lugares são para visitas frequentes e descobertas-de-surpresa. Em cada chegada-ali a gente aprende e decifra alguma coisa, e volta para casa com uma vitoriazinha nova na algibeira do espírito. 
 
Uma das dificuldades que sempre tive com o Ulisses foi o fato de que sou um leitor tradicionalista, quase caretão. Sou da escola de Conan Doyle, Maupassant e Erico Verissimo.  Gosto de textos onde os ambientes e personagens são visualmente descritos de forma até didática, onde quando há um diálogo sabemos quem foi que falou, e temos sempre uma noção clara do tempo e do espaço onde acontece a cena que estamos lendo. 
 
É justamente para não ficar atolado nesse formato que frequento a literatura de vanguarda, assim como quem durante a semana está no feijão-com-arroz caseiro, e no domingo vai a um restaurante tailandês ou baiano. Temos que empurrar o horizonte com a testa. 
 
E nessas fugidas ocasionais para conhecer o Ulisses acabei descobrindo uma série de filmes que me trazem o mundo visual da história, esse mundo que a descrição faiscadora e ziguezagueante de Joyce me negaceia o tempo todo. E aqui vão algumas dicas; todos podem ser encontrados no YouTube ou em serviços de “streaming”. 
 
1
James Joyce’s Ulysses (Channel 4)
https://www.youtube.com/watch?v=Ob3NWUtCCJI&t=1123s
 
Um desses documentários é James Joyce’s Ulysses, uma produção do Channel 4, da série “Ten Great Writers of the Modern World”. A direção e adaptação são de Nigel Watts e Gillian Greenwood. Este filme de uma hora de duração alterna imagens de arquivo da vida de Joyce, depoimentos de Anthony Burgess e Clive Hart, e cenas produzidas com atores reconstituindo episódios da vida de Joyce e do romance. 
 


(James Aubrey, como “Frank Budgen”, e Brian Murray como “James Joyce”)
 
 
Durante seus anos em Zurique, Joyce criou uma amizade com o artista plástico (e funcionário do governo britânico) Frank Budgen. Os dois tinham gostos e temperamentos parecidos, viram-se com frequência durante anos.  Essa amizade resultou num dos livros mais legíveis sobre a obra joyceana: James Joyce and the Making of Ulysses (1934), onde ele alterna reconstituições de conversas entre os dois, e interpretações próprias sobre o romance. 
 
Budgen era um homem culto, bem-humorado, sem frescura. Alguns diálogos entre ele e Joyce são encenados no filme, com atores. 



(David Suchet, como “Leopold Bloom”)

 
Mais interessantes são as encenações de trechos do Ulysses, tendo David Suchet (o conhecido “Hercule Poirot” de dezenas de filmes) no papel de Leopold Bloom, John Lynch no de Stephen Dedalus, e Sorche Cusack como Molly Bloom. E não deixa de ser divertido ver os depoimentos de Anthony Burgess (Laranja Mecânica, etc.), um escritor que admiro, com seu terno xadrezado, sua cara rubicunda, sua voz de barítono encatarrado, parecendo um irmão mais velho de Van Morrison. 
 
2
O Ulisses de Joseph Strick
https://www.youtube.com/watch?v=h7xAM_eXuuk&t=5044s



(Maurice Roëves, como “Stephen Dedalus”, e Milo O’Shea, como “Leopold Bloom”)
 
 
A mais corajosa adaptação do romance foi dirigida em 1967 por Joseph Strick (1923-2010), documentarista, engenheiro, inventor. Dizem que ele era o dono da única residência nos EUA com projeto de Oscar Niemeyer. Ganhou um Oscar de “Melhor Documentário” (Interviews  with My Lai Veterans, 1970) e em Londres foi diretor da Royal Shakespeare Company. 
 
Sua adaptação do Ulisses, filmada em preto-e-branco, está no YouTube. Não tem legendas em português, mas é possível acompanhar os diálogos nas legendas “Closed Captions”, que transcrevem o áudio. Essas legendas são dos primórdios da Inteligência Artificial, e são uma diversão à parte, porque a interpretação dos áudios é deficiente e o que aparece nas legendas, de vez em quando, é Zé Limeira puro, é algo que “out-Joyces Joyce”. 
 
Diversão à parte, é um filme útil para quem tem à mão (e na memória) uma descrição explicativa de cada episódio do romance. Ulisses não é um livro onde você entra a toda velocidade, ao volante de uma Ferrari. É um livro para ler sobre, estudar a respeito, consultar resumos e sinopses, ver filmes (mesmo sem entender o inglês)... Ir chegando aos poucos, dando voltas em torno da cidade sitiada, como fez Josué circundando Jericó, até ser capaz de derrubar suas muralhas com o mero soar das trombetas. Boa sorte. 
 
 
3
James Joyce’s Women, de Fionnula Flanagan (1985)
https://www.youtube.com/watch?v=ivhmaIjmXBw&t=3179s


(Fionnula Flanagan, como "Nora Barnacle")

Também no providencial YouTube encontra-se a versão cinematográfica de James Joyce’s Women, uma peça teatral concebida e interpretada pela atriz irlandesa Fionnula Flanagan. É um projeto ambicioso e, pela parte que me toca, extremamente bem sucedido. Fionnula concebeu a peça (e depois o filme) em torno das personagens femininas da vida de James Joyce (sua esposa Nora Barnacle, sua mecenas Harriet Shaw Weaver, sua editora Sylvia Beach), bem como personagens dos seus romances (Molly Bloom, Gertie MacDowell, etc.). 

 


(Fionnula Flanagan, como "Gertie Mac Dowell")

O projeto de Ms. Flanagan é atemorizante (produzir, escrever e interpretar um texto assim), mas o fato é que ela consegue costurar todas essas figuras femininas numa colcha-de-retalhos em que cada pedaço revela coisas novas dos livros, do escritor, do papel que essas mulheres tiveram em sua vida. Principalmente Nora, a mulher com quem Joyce manteve um casamento tumultuado mas leal até o dia em que morreu, uma mulher não-intelectual, pragmática, irônica, que não lia os livros do marido mas o defendia na-porrada se preciso fosse. 
 
De Nora Barnacle, dizia o amigo de Joyce, Frank Budgen (James Joyce and the Making of Ulysses, Indiana University Press, 1960) 
 
Mrs. Joyce tem uma presença impositiva, mas o que mais impressiona as pessoas de suas relações é a sua absoluta independência. Seus julgamentos a respeito das pessoas e das coisas são sempre rápidos e diretos, e procedem de uma escala de valores inteiramente pessoal, que não imita nem se dobra a ninguém. (Cap. II, trad. BT) 



(Fionnula Flanagan, como "Molly Bloom")


Fionnula Flanagan é uma camaleoa diante da câmera, pulando de personagem em personagem com metamorfoses e coerência. E nos deixa imaginando como seria (im)possível fazer no palco, em tempo real, essa gincana de reencarnações. O filme tem como subtítulo “An Erotic Masterpiece”, e teve problemas com a censura (tal como o livro), até porque reconstitui as cenas de masturbação, do urinol, etc. 
 
 
4
Bloom, de Sean Walsh (2003)
https://www.ulysses.ie/watch
 

Também pode ser vista em streaming esta adaptação do romance dirigida por Sean Walsh. É interessante ver esse filme em paralelo com a adaptação de Joseph Strick, porque cada diretor visualiza as cenas à sua maneira, mas ainda assim vê-se uma convergência que resulta da leitura atenta do livro, em ambos os casos. 
 
Walsh é um diretor mais pragmático, menos conceitual do que Joseph Strick. Seu objetivo declarado não é fazer uma obra-prima a partir de outra obra-prima, mas transformar um livro tido como inacessível numa história audio-visual que qualquer um pode acompanhar. 
 
Esta matéria do The Guardian mostra algumas qualidades e limitações do filme, e transcreve as declarações de Sean Walsh a respeito: 
https://www.theguardian.com/film/2003/nov/23/classics.books
 
 
***
 
“Precisamos mesmo disso tudo para ler um simples livro?”, pergunta alguém. Eu diria que sim, precisamos (ou pelo menos EU preciso), porque não se trata de cumprir a tarefa de ler um romance, dar um suspiro de alívio, e riscar aquele título na lista das obrigações. Um grande livro é para ser frequentado. 
 
“O Ulisses é para todo mundo?” Não, não é. Nenhum livro é para todo mundo. Isso vale tanto para o Ulisses quanto para Brás Cubas, O Pequeno Príncipe, as Memórias de Sherlock Holmes, A Rosa do Povo, Catatau, Meu Pé de Laranja Lima. Cada livro tem seu público. Escolha seus livros, e deixe o resto em paz. 
 
Entre outras coisas, Ulisses é feito (penso eu) para quem tem paixão pela palavra, mania, doença pela palavra. É curioso perceber que nem todo mundo tem isso, e mesmo muitos grandes intelectuais, escritores, poetas, cientistas sociais, não têm. Gostam das idéias, de preferências as idéias grandiosas, vastas, importantes. Usam a palavra como usam o dinheiro: por uma mera convenção social. 
 
Joyce tinha adicção pela palavra. Edmund Wilson observa com agudeza (O Castelo de Axel, trad. José Paulo Paes): 
 
O livro se torna muito mais compreensível a literatos do que a pessoas desprovidas de “mentalidade verbal”, pessoas cujas mentes não engendram palavras em resposta a sensações, emoções e pensamentos. 
 
Já acompanhei nas redes sociais discussões curiosas entre pessoas que “têm uma vozinha (ou várias) falando na cabeça o tempo todo” e pessoas que confessam só recorrer à verbalização quando precisam falar ou escrever algo. Bem – eu sou do primeiro tipo, e aposto meu Dicionário Houaiss que James Joyce também era assim; e não só ele, como Guimarães Rosa, Lewis Carroll, Jessier Quirino e Jacques Lacan. 

Não se trata de erudição, embora em alguns casos a erudição nos venha em socorro. Trata-se de experimentar um prazer sinestésico, quase físico, no ato de desmontar e remontar uma palavra nova, de fazer, desfazer e refazer uma frase besta para dizer que “o livre está na mesma”.  
 
Joyce divertia-se muito com a própria escrita. Costumava presentear o Ulisses a garçons e a porteiros de hotel, acreditando que estes seriam capazes de captar sua usina de gírias, suas alusões fesceninas, seu humor de cabaré. 
 
Dizia seu amigo Frank Budgen:
 
Joyce tem uma gargalhada longa, clara, cheia de divertimento diante dos próprios enganos. Uma gargalhada é um ato significativo. A gargalhada de Joyce é livre e espontânea. É o tipo de risada provocada pelas incongruências solenes, as trapaças malandras e as atrapalhações inesperadas da vida social, mas nela não há nenhuma malícia nem Schadenfreude, a alegria com a desgraça alheia. A risada dele é do tipo que a gente esperaria ouvir caso o presidente da república botasse na cabeça o chapéu errado, mas não se uma rajada de vento jogasse o chapéu de um homem pobre na sarjeta. (Cap. I, trad. BT) 
 
 

 




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