Num dos ensaios de Stand
Still Like the Hummingbird (New Directions, 1962) Henry Miller celebra a
figura de Walt Whitman, um poeta que, segundo ele, a América jamais compreendeu,
e preferiu “celebrar Lincoln, uma figura histórica inferior”.
Miller diz
interessar-se mais pelo Whitman visionário do que propriamente pelo poeta, e a
certa altura comenta:
Talvez o único poeta com quem ele possa ser comparado seja Dante. Mais
do que qualquer outra figura, Dante simboliza o mundo medieval. Whitman é a
encarnação do homem moderno. (trad. BT)
Não pode haver dois poetas mais diferentes, e talvez seja
isso que dá consistência à comparação de Miller. São dois universos
completamente distintos.
Alguém talvez argumente que Dante Alighieri e a Divina Comédia têm uma importância muito
maior para a Humanidade, numa escala muito mais grandiosa, do que Whitman e
suas Folhas de Relva. Mesmo assim,
esse argumento corrobora a visão de Miller e mostra por que motivo Whitman
representa bem a nossa época.
Seria possível reproduzir a oposição entre os dois poetas
em várias fórmulas parecidas.
Dante exprime uma época que acreditava no Universo como
uma série de esferas concêntricas, com a Terra no dentro de tudo; Whitman é o
poeta da era que propôs o universo sem forma definida e em constante expansão.
Dante é o poeta da monarquia e da aristocracia, com o
poder se concentrando cada vez mais num número cada vez menor de indivíduos,
desde o doge de Veneza até o Papa ou o rei; Whitman é o poeta da democracia, do
mundo em que o Poder emana de cada indivíduo, cada um deles detentor de um voto
de igual peso.
Dante é um poeta de uma época verticalizada, de valores dispostos
numa escala hierárquica que tem no topo um conjunto de valores Absolutos.
Whitman é o poeta de um mundo horizontal, onde todos os valores são
equilibrados, contidos e relativizados por outros valores.
O universo de Dante Alighieri era um universo fechado,
nítido, aconchegante, em forma de mandala. Um
universo fundado em simetrias, em regularidades lógicas, consequentes;
em formas harmônicas que por essa mesma natureza se tornavam previsíveis.
Whitman existe num universo sem contornos definidos e em
expansão assimétrica, como uma nuvem; um universo sujeito ao Acaso, à
Incerteza, à Indeterminação, sem referência hierárquica e sem eixo central,
cujo ponto de vista prevalente não é a Divindade, mas o “Eu” do poeta.
(Norman Rockwell, The Connoisseur, 1952)
O poema de Dante, por mais que esteja povoado de
criaturas, tem uma estrutura rígida, de precisão arquitetônica. Como diz
Carmelo Distante em seu prefácio à edição da Divina Comédia da Editora 34 (1998, trad. Italo Eugenio Mauro):
A arquitetura da Comédia se assemelha perfeitamente à de uma
catedral gótica traçada com absoluta racionalidade geométrico-matemática, como
de resto ocorre sempre quando se trata de arte simbólica. Tudo na Comédia
é subdividido e organizado com lógica consequência. (pág. 12)
É um mecanismo regido pelos conceitos do Uno e da
Trindade, subdividido em módulos ternários: os três livros, a terça rima, os
nove círculos, etc. Uma “construção em
constrição”, como observou Augusto de Campos (Invenção).
Já as Folhas de
Relva de Whitman são uma superfície vasta, coberta de forma aparentemente
caótica por figuras em diferentes escalas, superpostas, misturadas,
ocultando-se parcialmente, produzindo efeitos de choque e contraste, sem
nenhuma grade organizadora aparente.
A Divina Comédia
se apresenta como obra pronta e acabada, ao passo que as Folhas de Relva brotaram por acreção, ao longo da vida do autor; o
mesmo livro, cada vez maior e mais ampliado a cada reedição. Consta que a
primeira edição de Leaves of Grass tinha
uma dúzia de poemas, e a última mais de 400. Poemas longuíssimos ou
extremamente curtos, extensos monólogos, epigramas fugazes, tudo em verso
livre, com um sopro rítmico bem pessoal mas explodindo as formas fixas
consagradas, abolindo a rima. O império da assimetria, do improviso, da
inspiração aleatória.
Jorge Luís Borges confessa que na juventude considerou a
poesia de Whitman como a única que prestava, e que não imitá-lo era sinal de
ignorância (Perfis: um Ensaio
Autobiográfico, Globo/MEC, 1971).
Diz ele também, em Borges:
El Misterio Esencial (Sudamericana, 2021):
Whitman pensou
que seus pensamentos eram “os pensamentos de todos os homens em todas as épocas
e países”. Disse: “Não são pensamentos originais meus.” Queria ser todos os
demais; queria ser todos os homens. Considerava-se um panteísta, ainda que o
mundo relutasse em aceitar isto. (trad. BT)
Henry Miller vai mais longe:
Whitman foi chamado de panteísta. Muitos já se referiram a ele como o
grande democrata. Outros disseram que possuía uma consciência cósmica. Todas as
tentativas de lhe aplicar um rótulo ou uma categoria acabaram caindo por terra.
Por que não aceitá-lo como um puro fenômeno? (...) Ele não é um democrata: é um
anarquista. (pág. 109-110)
Apesar da enorme distância cronológica entre os dois
(Dante nasceu em 1265, Whitman em 1819), assemelham-se na grandiosidade do
projeto que conceberam e executaram. Exemplos de quando um conjunto poético
capta o espírito de seu tempo e, por alguns momentos, “o que está embaixo é
igual ao que está em cima”.
Dante Alighieri exprimia a solidez, a clareza e a
imobilidade de um mundo visto pelos olhos da religião. Whitman exprime a
turbulência, a indefinição e o movimento caótico de um mundo visto pelos olhos
da ciência.
W. B.
Yeats dizia, em “The Second Coming”: “The center cannot hold”. O centro
não se sustenta. É a imagem de um mundo implodido pela Guerra e pela convulsão
social. No mundo de Whitman, também não existe mais centro, mas isso deve ser
visto não como uma catástrofe, mas como um novo ponto de partida. Faz apenas um
século, um século e meio, que essa percepção vem se impondo ao nosso espírito.
É cedo ainda para a humanidade se sentir confortável.
Nenhum comentário:
Postar um comentário