quarta-feira, 27 de novembro de 2024

5127) O mundo perdeu o centro (27.11.2024)

 

 
Num dos ensaios de Stand Still Like the Hummingbird (New Directions, 1962) Henry Miller celebra a figura de Walt Whitman, um poeta que, segundo ele, a América jamais compreendeu, e preferiu “celebrar Lincoln, uma figura histórica inferior”. 

Miller diz interessar-se mais pelo Whitman visionário do que propriamente pelo poeta, e a certa altura comenta: 
 
Talvez o único poeta com quem ele possa ser comparado seja Dante. Mais do que qualquer outra figura, Dante simboliza o mundo medieval. Whitman é a encarnação do homem moderno. (trad. BT) 
 
Não pode haver dois poetas mais diferentes, e talvez seja isso que dá consistência à comparação de Miller. São dois universos completamente distintos. 
 
Alguém talvez argumente que Dante Alighieri e a Divina Comédia têm uma importância muito maior para a Humanidade, numa escala muito mais grandiosa, do que Whitman e suas Folhas de Relva. Mesmo assim, esse argumento corrobora a visão de Miller e mostra por que motivo Whitman representa bem a nossa época. 
 
Seria possível reproduzir a oposição entre os dois poetas em várias fórmulas parecidas. 
 
Dante exprime uma época que acreditava no Universo como uma série de esferas concêntricas, com a Terra no dentro de tudo; Whitman é o poeta da era que propôs o universo sem forma definida e em constante expansão. 
 





 
Dante é o poeta da monarquia e da aristocracia, com o poder se concentrando cada vez mais num número cada vez menor de indivíduos, desde o doge de Veneza até o Papa ou o rei; Whitman é o poeta da democracia, do mundo em que o Poder emana de cada indivíduo, cada um deles detentor de um voto de igual peso. 
 
Dante é um poeta de uma época verticalizada, de valores dispostos numa escala hierárquica que tem no topo um conjunto de valores Absolutos. Whitman é o poeta de um mundo horizontal, onde todos os valores são equilibrados, contidos e relativizados por outros valores. 



 

O universo de Dante Alighieri era um universo fechado, nítido, aconchegante, em forma de mandala. Um  universo fundado em simetrias, em regularidades lógicas, consequentes; em formas harmônicas que por essa mesma natureza se tornavam previsíveis. 
 
Whitman existe num universo sem contornos definidos e em expansão assimétrica, como uma nuvem; um universo sujeito ao Acaso, à Incerteza, à Indeterminação, sem referência hierárquica e sem eixo central, cujo ponto de vista prevalente não é a Divindade, mas o “Eu” do poeta. 




(Norman Rockwell, The Connoisseur, 1952)


O poema de Dante, por mais que esteja povoado de criaturas, tem uma estrutura rígida, de precisão arquitetônica. Como diz Carmelo Distante em seu prefácio à edição da Divina Comédia da Editora 34 (1998, trad. Italo Eugenio Mauro): 
 
A arquitetura da Comédia se assemelha perfeitamente à de uma catedral gótica traçada com absoluta racionalidade geométrico-matemática, como de resto ocorre sempre quando se trata de arte simbólica. Tudo na Comédia é subdividido e organizado com lógica consequência. (pág. 12) 
 
É um mecanismo regido pelos conceitos do Uno e da Trindade, subdividido em módulos ternários: os três livros, a terça rima, os nove círculos, etc.  Uma “construção em constrição”, como observou Augusto de Campos (Invenção). 
 
Já as Folhas de Relva de Whitman são uma superfície vasta, coberta de forma aparentemente caótica por figuras em diferentes escalas, superpostas, misturadas, ocultando-se parcialmente, produzindo efeitos de choque e contraste, sem nenhuma grade organizadora aparente. 
 
A Divina Comédia se apresenta como obra pronta e acabada, ao passo que as Folhas de Relva brotaram por acreção, ao longo da vida do autor; o mesmo livro, cada vez maior e mais ampliado a cada reedição. Consta que a primeira edição de Leaves of Grass tinha uma dúzia de poemas, e a última mais de 400. Poemas longuíssimos ou extremamente curtos, extensos monólogos, epigramas fugazes, tudo em verso livre, com um sopro rítmico bem pessoal mas explodindo as formas fixas consagradas, abolindo a rima. O império da assimetria, do improviso, da inspiração aleatória. 




Jorge Luís Borges confessa que na juventude considerou a poesia de Whitman como a única que prestava, e que não imitá-lo era sinal de ignorância (Perfis: um Ensaio Autobiográfico, Globo/MEC, 1971). 
 
Diz ele também, em Borges: El Misterio Esencial (Sudamericana, 2021)
 
Whitman pensou que seus pensamentos eram “os pensamentos de todos os homens em todas as épocas e países”. Disse: “Não são pensamentos originais meus.” Queria ser todos os demais; queria ser todos os homens. Considerava-se um panteísta, ainda que o mundo relutasse em aceitar isto. (trad. BT) 
 
Henry Miller vai mais longe:
 
Whitman foi chamado de panteísta. Muitos já se referiram a ele como o grande democrata. Outros disseram que possuía uma consciência cósmica. Todas as tentativas de lhe aplicar um rótulo ou uma categoria acabaram caindo por terra. Por que não aceitá-lo como um puro fenômeno? (...) Ele não é um democrata: é um anarquista. (pág. 109-110) 
 
Apesar da enorme distância cronológica entre os dois (Dante nasceu em 1265, Whitman em 1819), assemelham-se na grandiosidade do projeto que conceberam e executaram. Exemplos de quando um conjunto poético capta o espírito de seu tempo e, por alguns momentos, “o que está embaixo é igual ao que está em cima”.  
 
Dante Alighieri exprimia a solidez, a clareza e a imobilidade de um mundo visto pelos olhos da religião. Whitman exprime a turbulência, a indefinição e o movimento caótico de um mundo visto pelos olhos da ciência. 
 
W. B. Yeats dizia, em “The Second Coming”: “The center cannot hold”. O centro não se sustenta. É a imagem de um mundo implodido pela Guerra e pela convulsão social. No mundo de Whitman, também não existe mais centro, mas isso deve ser visto não como uma catástrofe, mas como um novo ponto de partida. Faz apenas um século, um século e meio, que essa percepção vem se impondo ao nosso espírito. É cedo ainda para a humanidade se sentir confortável. 
 
 
 
 





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