Acho que ainda não escrevi aqui sobre esta ótima série do
Netflix, cuja primeira temporada assisti no ano passado. Estou vendo agora a
segunda, que é ainda melhor.
A série acompanha a embaixadora Kate Wyler (Keri Russell)
e seu marido Hal (Rufus Sewell) depois que ela é nomeada embaixadora dos EUA no
Reino Unido. O casal tinha servido em missões diplomáticas no Oriente, e
estavam os dois acostumados a uma maneira de viver, digamos, mais informal e
mais pragmática. E de repente, lá estão os dois em pleno “circuito Elizabeth
Arden”, tendo que aderir aos numerosos fricotes e rapapés do cargo.
O fato de que o casal está em crise e que ela está sendo
cotada para assumir a vice-presidência dos EUA traz para a história uma
dimensão de conflito a mais. E de “manutenção da imagem pública” – essencial
para a sobrevivência política. Os personagens de Nelson Rodrigues costumavam
“calçar as sandálias da humildade”; os de Debora Cahn (a criadora da série) não
sobrevivem sem o black-tie da hipocrisia.
Debora Cahn tem no currículo (como roteirista e/ou
produtora) séries respeitadas como Homeland
(2011-2020), Grey’s Anatomy (2005-...)
e The West Wing (1999-2006).
O saudoso dr. Ulysses Guimarães dizia que a arma do
político é a saliva, e isto faz com que una narrativa desse tipo precise
mostrar o tempo inteiro pessoas falando, negociando, divergindo, conspirando, mentindo,
desmascarando, interrogando...
O diálogo é a arma principal dessas tramas, até porque
cada pessoa diz coisas totalmente opostas, dependendo do lugar onde se encontra
e da pessoa com quem fala.
O filme-de-política e o filme-de-diplomacia têm uma interface
interessante com o filme-de-espionagem. Nunca sabemos quem é o espião
infiltrado, quem é o informante secreto, quem é o traidor, quem é o colega que
joga cascas-de-banana à nossa frente, quem é o carreirista que quer o nosso
cargo, quem é o mentiroso contumaz que planta verde para colher maduro.
Kate Wyler é uma personagem interessante porque é uma
mulher esperta, inteligente, de raciocínio rápido, um tanto idealista (até onde
é possível manter algum idealismo dentro do lamaçal de interesses que é a
política), disposta a conversar e a negociar com todo mundo.
Por outro lado, ela é jovem, é ainda um tanto “verde” na
carreira. O fato do marido ser calejado e lhe dar orientações o tempo todo tanto
ajuda quanto atrapalha. Aqui e ali ela é chamada por alguém de “caipira”, pela
relativa inexperiência, e pelo modo desmazelado como cuida da própria
aparência. Ela é bonita e atraente, mas veste qualquer coisa, não usa
maquiagem, o cabelo parece o de Madame Min, e não tem paciência para as “coisas
de mulherzinha”.
A atriz dá um banho, criando essa personagem tensa,
motivada, obcecada, de cabeça elétrica, capaz de meter os pés pelas mãos,
reconhecer o erro em questão de segundos, sacudir a poeira e seguir em frente,
como um atacante do futebol que perde um gol feito e volta correndo para marcar
o contra-ataque, sem ficar com mimimi.
(Rufus Sewell, como "Hal Wyler")
Gosto de Rufus Sewell, que foi um excelente vilão em O Ilusionista (Neil Burger, 2006) e em O Homem do Castelo Alto (série de Frank
Spotnitz, 2015-2019). Aqui, ele faz o papel ambíguo de quem não é vilão, mas é
capaz mentir como quem dá um drible. E de, digamos, tomar certos atalhos éticos
para facilitar as coisas. Hal Wyler é o que Zózimo Barrozo do Amaral chamava “uma
raposa felpuda”. Alguém que é íntimo dos corredores do poder, está em dia com
todas as intrigas e contra-intrigas, tem controle sobre os próprios escrúpulos,
e sabe exatamente do que os vilões são capazes – alguém que “é da tribo, e
conhece os caboclos”.
O roteiro tem o cardápio dramático de histórias assim. O
mundo da alta política se presta ao melodrama porque nele existe a mesma
concentração de Poder (sobre vidas humanas, sobre fortunas, etc.) que havia em
grandes vilões como Dr. Mabuse, Fantômas, Fu-Man-Chu, Prof. Moriarty... só que
agora elevados a uma potência muito maior. São decisões e conflitos que não
podem simplesmente derrubar um governo ou mandar gente para a cadeia – podem
provocar uma nova Guerra Mundial.
Andei peruando o que os críticos (e os diplomatas de
verdade) comentam por aí.
Os críticos elogiam (e eu concordo) a narração segura,
veloz, que mal dá tempo da gente respirar. As tramas são bem articuladas, há
surpresas e puxadas de tapete (geralmente verossímeis) a cada episódio. O
elenco é muito bom. Os diálogos, excelentes.
Os diplomatas criticam (com razão) as muitas liberdades
que os autores tomam em relação ao assunto. “Nunca que na vida real da
diplomacia aconteceria algo assim”, dizem eles. “Situações romantizadas”, “simplificação
de uma realidade complexa”, “concessões ao gosto popular em detrimento da
fidelidade aos fatos”.
Se colocarmos esses dois conjuntos de opiniões num
liquidificador, o que teremos é, no fim das contas, a essência do melodrama. O
melodrama consiste em pegar uma realidade que o público seja capaz de
reconhecer (mesmo sem conhecimento dela em primeira mão) e exagerar seus
aspectos dramáticos até chegar a esse paradoxo – é um conjunto de exageros, em
benefício da dramaticidade narrativa, que distorce uma realidade mas ela
continua reconhecível.
O melodrama é uma caricatura. Os críticos estão certos em
perceber que tudo ali é distorcido em favor da emoção, do suspense, do
mistério, do susto, das revelações psicológicas, da revelação do lado ridículo
e do lado sinistro da alma humana.
Os diplomatas (e mil outros profissionais) têm sua
parcela de razão quando dizem que aquele retrato não é fiel à realidade. É
muito raro que um retrato desse tipo, no cinema e na narrativa em geral, seja
fiel. Porque não é um retrato – é uma caricatura.
Raymond Chandler, um criador de melodramas com sucesso de
crítica e de público, sabia disso. Sabia o quanto num romance assim (ou num filme) o realismo é apenas aparente. (Todo
realismo narrativo é apenas aparente – mas esta é uma discussão filosófica que
fica para oytra hora.)
Numa carta para a agente literária Bernice Baumgarten, em
11 de março de 1949, Chandler explicava:
O material do
escritor de mistério é o melodrama, que é um exagero da violência e do medo
muito além do que alguém experimenta normalmente na vida. (Estou falando
“normalmente”: nenhum escritor jamais chegou perto da vida nos campos de
concentração nazistas.) Os meios que ele
emprega são realistas no sentido de que coisas assim acontecem a pessoas como
aquelas em lugares como aqueles; mas o realismo é superficial; o potencial de
emoção é exagerado, a compressão de tempo e de espaço é uma violação das
probabilidades, e embora tais coisas aconteçam, elas não acontecem com tal rapidez
e dentro de limites lógicos tão estreitos a um grupo tão reduzido de pessoas. (trad. BT)
O romancista (tal como o roteirista de cinema/TV) é
forçado a comprimir, simplificar, fazer vista grossa a processos lentos e
complicados da vida real. Quantas vezes vemos gente se queixando de que nos
filmes há sempre um táxi para atender um aceno, e as contas são pagas sem a
perda daqueles longos minutos de passar troco, passar cartão, etc.
Quando personagens reais (políticos, etc.) aparecem numa
história, não se pode interromper a narrativa principal para “fazer jus” ao
Figurão – ele diz as falas que tem para dizer, e desaparece.
É utópico exigir de histórias assim uma verossimilhança
rigorosa – embora, ao mesmo tempo, isso tenha que ser cobrado toda vez. Roteiristas
e produtores precisam ser tão fiscalizados quanto empresários e políticos. São
todos humanos, todos parecidos.
(Raymond Chandler)
Mesmo quando essas narrativas são elogiadas, nem sempre o
são pelos motivos certos. O próprio Chandler se sentia incomodado quando alguém
super-valorizava sua atitude, como nesta carta para o editor do Harper’s Magazine, Frederick Lewis
Allen, em 7 de maio de 1948:
Aqui estou eu agora, na metade de um novo romance sobre Marlowe,
divertindo-me um pouco (até empacar de novo) e de repente me aparece esse tal
de Auden e diz que estou escrevendo sérios estudos a respeito de um ambiente
criminal. E agora fico olhando para cada coisa que escrevo e dizendo a mim
mesmo: Lembre-se, meu velho, isso tem que ser um sério estudo de um ambiente
criminal. Você está sendo sério? Não. Isso é um ambiente criminal? Não, somente
a corrupção mediana da vida, com o ângulo melodramático um pouco exagerado, não
porque eu seja maluco pelo melodrama em si, mas porque sou realista o bastante
para conhecer as regras do jogo.
(Debora Cahn, criadora da série, e Keri Russell, "Kate Wyler")
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