domingo, 24 de novembro de 2024

5126) A arte de não dizer dizendo (24.11.2024)




(Matsuo Bashô, 1644-1694)

 
Existe uma artezinha específica dentro da grande Arte que consiste na habilidade de “não dizer, dizendo”. Afirmar alguma coisa sem afirmá-la de forma explícita. 
 
É o que faz Matsuo Bashô, o poeta japonês tido como um dos mestres do haicai. 
 
Um poema famoso dele diz: 
 
Feliz daquele
que vendo um relâmpago não diz: 
“a vida é breve”. 
 
Bashô consegue colocar nessas três linhas uma observação da natureza, uma reflexão filosófica sobre a condição humana, e um comentário irônico a respeito das limitações e dos perigos da imagem poética. 
 
Digressão: não vou tocar no assunto de quantas sílabas tem um haicai, nem falar de métrica ou de rimas. O haicai acima tem inúmeras traduções, com diferentes verbalizações, mas o que quero examinar aqui é a idéia básica, presente em todas essas versões. 
 
Outra versão diz: 
 
Admirável
aquele que diante do relâmpago
não diz: a vida foge. 
 
Este haicai tem três passos estruturados em ordem inversa. Se o vemos como uma pequena “historinha”, podemos reconstituir a sucessão dos fatos: 
 
1)      A pessoa vê o relâmpago
2)      A pessoa diz: “a vida é breve”
3)      O poeta ironiza esse clichê



 

Bashô provavelmente já viveu a experiência de observar um relâmpago no céu e sentir-se tentado a fazer essa comparação. O poeta profissional faz comparações desse tipo o dia inteiro. É quase um reflexo instintivo, como o de quem faz trocadilhos a respeito de tudo. E por essa mesma longa prática o poeta percebe que esta expressão lhe ocorreu do mesmo modo como já ocorreu a dezenas de outros; já foi dita por centenas de outros; foi escutada por milhares. Pode até ser uma imagem bonita, mas a esta altura é um lugar-comum. 
 
Comparar a duração da vida à brevidade do relâmpago é uma imagem poética aceitável, como tantas outras. O que a desgasta é a repetição, especialmente a repetição que se acha originalíssima, “descobrindo a pólvora”. 
 
A imagem, fora desse contexto que a transforma em clichê, continua dizendo alguma coisa. Bashô quer preservar essa “alguma coisa”, quer dizer mais uma vez isto que tantos já disseram, e ao mesmo tempo reconhece que está num impasse, diante do risco de parecer banal. 
 
O que faz o poeta? Ele descobre uma maneira de fazer as duas coisas. Ou, como se diz em inglês, “to have his cake and eat it too” – ao pé da letra, “comer o bolo, e continuar tendo um bolo para si”.  E ele usa o clichê com o álibi de criticá-lo. 
 
Como se dissesse: “Se é para repetir um lugar-comum, é melhor ficar calado. Não diga.” O silêncio pode estar carregado de sentimento poético, e às vezes (na falta de uma expressão original, vívida), é melhor a não-fala, o não-gesto. 
 
Como dizia Carlos Drummond: 
 
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.
(“Canto Esponjoso”, em Novos Poemas, 1946-47) 
 
Com esse recurso sutil da crítica ao clichê, Bashô consegue dizer, suspirando, que a vida é breve, e ao mesmo tempo alertar os alunos (nós todos) de que essa sensação, por mais lírica e filosófica que seja, fica meio banal quando comparada ao relâmpago. (Ou – aqui o recado iria para os poetas românticos – à vida breve de uma rosa.) 



(Edgard Navarro)

 
Esse pulo-do-gato do poeta japonês me lembra uma reflexão que vi numa palestra do cineasta baiano Edgard Navarro. Quem conhece o cinema de Edgard sabe de sua proximidade epidérmica com o melodrama, as situações extremas, as emoções, os afetos, os lances dramáticos, tudo aquilo que vemos nas telenovelas e nos folhetins eletrônicos. 
 
Todos nós gostamos de melodrama, e nesse “todos” incluo Federico Fellini, Luís Buñuel, François Truffaut, Francis Coppola, Pedro Almodóvar, Woody Allen... Todos gostamos, mas todos temos consciência do quanto a narrativa melodramática se coagulou em torno de algumas dezenas de clichês obrigatórios. 
 
O que fazer? Edgard propunha usar o melodrama misturado a elementos que de certa forma o diluem, ou o criticam, ou o relativizam de alguma maneira. 
 
Escrevi a respeito disto aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/08/1180-sobrevida-do-melodrama-24122006.html
 
Resumindo, Edgar propõe usar o melodrama relativizado por quatro elementos:
 
1)      Visão crítica
2)      Humor impiedoso
3)      Distanciamento brechtiano
4)      Narrativa fragmentada
 
Tudo isto, segundo ele, nos ajuda a usar o poder hipnótico e sedutor das situações melodramáticas tradicionais, que arrebatam a platéia: as paixões, os ódios, as vinganças, os deus ex machina, as coincidências, o fatalismo, os salvamentos no derradeiro minuto, etc. Usá-las, com açúcar e com afeto, mas disciplinando-as através desses pontos de vista capazes de nos fazer ver além do clichê. 
 
O poeta Bashô descobriu, no seu modesto haicai, uma maneira de dizer o que o clichê diz, mas avisar a todo mundo que não é bobo, que sabe que aquilo é um clichê. É sua maneira pessoal de não dizer, dizendo. 



 
Outro haicai de Bashô, comentado por Paulo Leminski em sua excelente biografia do poeta (em Vida - 4 Biografias, Companhia das Letras) diz: 
 
Dia dos Mortos.
Assim como estão,
dedico as flores.
 
Leminski explica que no Dia dos Mortos os japoneses têm, tal como nós, a tradição de colocar flores no túmulo dos antepassados. Bashô (ou o seu “eu-lírico”, tanto faz) sente o impulso de colher as flores bonitas que está vendo e levá-las ao túmulo de alguma pessoa querida. Mas, em vez de fazer isso, o poeta as dedica mentalmente a esse morto querido e as deixa em paz – e assim celebra ao mesmo tempo a morte e a vida. 
 
Bashô parece sugerir aos poetas esse tipo de desprendimento: veja o relâmpago, filosofe calado, e não diga nada, não escreva nada, é melhor do que escrever uma banalidade. Ou faça como eu (diz ele): escreva a banalidade, mas aproveitando o que ela tem de bom e deixando claro o que tem de banal. 
 
O poema dele equivale a dizer: “Eu não vou repetir, como tanta gente, que a vida é breve como o relâmpago, embora o seja.” 
 
Na figura retórica chamada de paralipse, temos exatamente este mesmo processo: dizemos que não nos interessa falar de algo, mas no mesmo instante o fazemos. Como Machado de Assis, no famoso trecho de abertura do conto “Cantiga de Esponsais” (1884, em Histórias Sem Data), ele se dirige à sua “leitora”: 
 
Sabem o  que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; (...) 
 
Não é o mesmo caso de Bashô. Machado traça em algumas linhas um excelente retrato visual e sonoro da cena inicial do conto, mas o faz dizendo, com eufemismos, que não pode perder muito tempo com essa descrição, porque o que lhe interessa de verdade é contar o drama pessoal vivido pelo seu personagem, o Mestre Romão, regente dessa missa. 
 
E assim, desculpando-se por não poder mostrar a missa, ele a mostra. 


 
 
 
 




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