domingo, 18 de julho de 2021

4725) Minhas canções: "Eu Vi a Máquina Voadora" (18.7.2021)



Conheci Silvério Pessoa lá pelos idos de Mil Novecentos e Cocada, quando ele era o vocalista da banda Cascabulho, e eles vieram se apresentar no Rio.
 
Creio que essa primeira vez foi lá no saudoso Ballroom, no Humaitá. Era uma casa de shows que a gente chamava afetuosamente “o Bauru”: um salão amplo, com dancing grande, muitas mesas, bom palco. Antigamente funcionou ali (não alcancei essa época) o “Oba Oba”, o famoso show de dançarinas mulatas de Osvaldo Sargentelli. 

Tempos depois, durante um ano inteiro, foi a sede das “Segundas Eletroacústicas” promovidas pela banda Cabruêra. Toda 2ª. feira eles faziam um show e traziam convidados. Eu cantei lá numa noite em que o outro convidado era B Negão, e sugeri que eles botassem no cartaz: “HOJE – B Branquelo e B Negão”.
 
Voltando ao Cascabulho: depois do show, fui ao camarim conversar com eles, porque não sabia muita coisa do repertório da banda e me surpreendi vendo Silvério desfiar um rosário inteiro de cocos de Jackson do Pandeiro. Ficamos amigos e alguns anos depois, tendo ele saído da banda e começado carreira solo, fui várias vezes ao estúdio Drum, em Laranjeiras, perto de onde eu morava, para assistir as gravações do disco de estréia, Bate o Mancá, com o repertório do grande Jacinto Silva.



Eu sou um compositor que de vez em quando canta, Silvério é um cantor que de vez em quando compõe. Talvez nem tão de-vez-em-quando assim, porque já me mostrou muitas melodias. Mas acho que o sujeito que canta bem, que tem a cancha e a malícia da recriação musical, tem um prazer especial em pegar uma música já feita, já famosa, virá-la pelo avesso e perguntar: “Que tal assim?...”, e a platéia fazer: “Uau”.
 
Vai conversa, vem papo, a gente se reencontrando no Recife, no Rio, na Paraíba; Silvério me fez uma homenagem (chega uma idade em que a gente recebe homenagens; é preciso estar preparado) usando num disco dele o título Cabeça Elétrica, Coração Acústico, que eu tinha usado num cordel de 1981, impresso na gráfica da Casa das Crianças, de Olinda, reduto de cantadores e de cordelistas mantido pelo saudoso Giuseppe Baccaro.




Silvério conta que na verdade me conheceu no palco antes de eu conhecê-lo, pois me viu cantando numa “calourada” da UFPE, a famosa festa pós-vestibular onde artistas se sucedem no palco cantando para um ginásio cheio de estudantes de chope em punho. Eu gostava de cantar nesses ambientes, porque se você sobe num palco sozinho com um violão e vê alguns milhares de pessoas eufóricas, precisa apenas de meia dúzia de músicas com letra provocativa, tonitruante e desembestada, e isso felizmente nunca me faltou.
 
Eis-senão-quando Silvério me manda uma música parcialmente letrada, querendo que eu a finalizasse. A idéia era colocar uma faixa com inserção de vozes e versos de cantadores de viola “de verdade”, e a canção tinha que evocar os estilos da Cantoria.
 
Ajeitei os versos, pegando as idéias que já tinha, escrevi mais alguns, pensamos junto na questão do refrão (que acabou ficando “Eu vi a máquina voadora!”). E lá se foi Silvério pro Recife, e meses depois fui eu, e entrando no estúdio da Luni ele me mostrou as fitas já gravadas. Ali estava Alceu Valença compartilhando os vocais! Pedi uma cadeira. Ali estava meu amigo Zé Vicente da Paraíba de viola em punho, cantando seus próprios versos inspirados pela canção. “E o que eu posso querer mais?”



(Zé Vicente da Paraíba)

A canção em si tem um pouco desse visionarismo nordestino high-tech, onde se misturam eletricidade e Tarô, entidades indígenas e objetos voadores não identificados, subterrâneos coloniais e raio laser. Um clima presente nos romances fantásticos de Luís Berto ou de Aldo Lopes, nas “mercadorias e futuro” de Lirinha, no cinema futurista da Zona da Mata.
 
 
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https://www.letras.mus.br/silverio-pessoa/386050/
 
 
Eu Vi a Máquina Voadora
(BT & Silvério Pessoa, 2005)
 
Zé Vicente:
Os heróis aviadores
ou sejam, aviadoras,
nessas máquinas voadoras,
pilotos e inventores;
mecânicos e projetores
com hidrogênio ou com gás
engenharia capaz
pra motores diferentes
cruzando várias correntes
das camadas siderais.
 
Eu vi a máquina voadora!!!
 
Saber que quem pensa não é a cabeça
por mais que pareça saber computar;
os nervos do corpo são cabos de modem
que sabem e podem sentir ou pensar.
 
Saber que um cachorro entende linguagem
que os seres humanos já nem sabem mais
que falta trabalho pra quem só trabalha
e tem muita metralha prá quem pede a paz…
 
Ô Ô Ô Ô Ô...
 
Saber que o olhar da criança colore
de imaginário o mundo real
e a curva do gume do fio do facão
tem o talhe da curva do canavial.
 
Saber que nem todos precisam de terra,
saber que nem todos sabem fazer pão…
E um verso vadio feito de repente
retrata pra sempre o que viu no clarão.
 
Ô Ô Ô Ô Ô...
 
Eu vi a máquina voadora!!!
 
Saber que os loucos e os visionários
são dicionários dos sonhos de Deus,
e as almas dos mortos na tribo dos índios
são discos luzindo nos céus europeus.
 
O flash da foto reflete na gota
de chuva no espinho do mandacaru,
e o brilho ilumina poetas que cantam
num pé de parede de Caruaru.
 
Ô Ô Ô Ô Ô...
 
Unindo os ponteiros da telepatia
e a voz invisível do computador
eu cruzo os espaços, eu viro energia
tesão de guitarra, trovão de tambor.
 
A mente se pluga num mundo de arquivos,
memórias binárias, visões digitais,
eletricidade transforma-se em vida
e os raios um dia serão animais.
 
Eu vi a Máquina Voadora!!!!
Eu vi a Máquina Voadora!!!!
 
 
 



Um comentário:

Numa Ciro disse...

Eu tenho uma máquina voadora:
Dá cada rasante em sentidos no ar
E pega invisível nos blogs de Bráulio,
A chave secreta para poetizar