quinta-feira, 15 de julho de 2021

4724) "Noites Brancas": de Dostoiévski a Visconti (15.7.2021)



Num famoso prefácio, Jorge Luís Borges chancelou a importância de La Invención de Morel (1940), de Adolfo Bioy Casares, para a literatura imaginativa. A certa altura do texto, ele fazia um reparo um tanto irônico ao chamado romance psicológico. Borges defende neste prefácio a literatura que busca enredos inesperados, originais, reveladores. Ele achava, aparentemente, que as descobertas da literatura realista do século 19 estavam sendo repetidas muito passivamente pelos autores do século 20, e que isso era uma pena.
 
O romance psicológico (dizia ele) tende a ser amorfo.
 
“Os russos e seus discípulos demonstraram, até à saciedade, que ninguém é impossível: suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram a ponto de se separarem para sempre, delatores por fervor ou por humildade...”
(A Máquina Fantástica, A. B. Casares; Rio, Expressão e Cultura, 1974, trad. Vera Neves Pedroso).
 
De fato. Não há nada que o coração humano seja capaz de sentir que a mente humana não consiga racionalizar na prosa de ficção, até porque o coração segue roteiros hereditários (um bilhão de histórias de amor o comprovam) e uma mente boa, com boa pena e bom tinteiro, faz o que quer.
 
Suicidas por felicidade? Eu já tinha lido o ensaio de Edmund Wilson sobre O Castelo de Axel, em que o jovem e rico casal, de inexcedível beleza, incomparável inteligência e inimitável bom-gosto artístico recusa-se a dominar o mundo e decide abrir mão dele. “Viver?!”, diz a frase famosa, “Os nossos servos o farão por nós!”. E se matam!
 
De assassinos por benevolência a vida real está cheia; a literatura vai apenas dois passos atrás, secretariando as peripécias. Mas não se mata cavalo? 

Delatores por fervor ou por humildade não são difíceis de explicar. O próprio Borges produziu suas “Três Versões de Judas”; e num artigo na revista Sur (# 11, agosto de 1935), ele comenta o filme de John Ford, O Delator (“The Informer”, 1935), em que um irlandês denuncia um colega do IRA por uma recompensa mesquinha e pelas curvas de uma compatriota. Diz Borges, sempre um gourmet de sutilezas: “A infâmia cometida por distração, por mera brutalidade do infame, teria impressionado mais, artisticamente”.
 
Quando cheguei nas pessoas que se amam a ponto de se separarem para sempre, a primeira lembrança foi de uma leitura adolescente do conto “Noites Brancas” (“Belye nochi”, 1848) de Dostoiévski, na velha coleção encadernada em vermelho que meu pai comprou quando eu teria uns dez anos e cismei que Crime e Castigo era algo na linha de O Assassinato de Roger Ackroyd


“Noites Brancas” é a história de um rapaz sonhador que gosta de passear sozinho à noite pelas ruas desertas de São Petersburgo. Num certo sentido, é um contemporâneo às avessas do flâneur de Baudelaire, porque este último procurava o bulício, o burburinho, o espetáculo humano, enquanto que o narrador de Dostoiévski é um introspectivo, tímido, que na solidão das avenidas desertas se sente confortável como um peixe na água.
 
Caminhando a sós durante a noite, o narrador (que não tem nome) encontra uma moça chorando. Começam a conversar, simpatizam recatadamente um com o outro. Passam a marcar encontro, repetidamente, naquelas imediações, pois não moram muito longe, mas um não pode ir à casa do outro. Ele conta sua vida a ela, ela conta sua vida a ele. Ficamos sabendo que ela, que se chama Nastenka, tem uma paixão antiga, por um homem mais velho, culto, cosmopolita, que lhe declarou amor e viajou, ficando de voltar dali a um ano para casar com ela. Foi a ausência dele no compromisso marcado que a fez chorar.
 
Como o conto é narrado na primeira pessoa, temos acesso direto apenas aos pensamentos do narrador. Ele se apaixona por Nastenka, e ela por ele. E numa dessas noites, quando estão no auge dessa paixão inocente (porque não fazem nada mais do que passear pelas ruas), o outro namorado aparece. Ela o vê na rua. Corre para os braços dele. Volta. Dá um beijo de despedida no narrador. Vai embora para sempre com o outro.
 
No dia seguinte, ela lhe manda um bilhete dizendo que o ama, sim, mas ama muito mais o outro, e que pena que os dois não sejam um só. E o narrador termina comentando que na véspera chegou a ser feliz por um momento, acreditando que ela seria sua, e conclui: “Meu Deus! Um momento pleno de felicidade! Será que isso é pouco para preencher uma vida humana?”.


(Livorno)

O conto foi adaptado para o cinema, com as necessárias modificações, por Luchino Visconti, em Le Notti Bianche (1957), com Marcello Mastroianni e Maria Schell. Visconti transpõe a ação para a Itália, para Livorno, cidade recriada em estúdio por um trabalho cenográfico incrível. Fala-se muito nos cenários artificiais do Expressionismo Alemão, em clássicos como O Gabinete do Dr. Caligari, Fausto e outros. Pois o filme de Visconti acontece num mundo que parece feito de papel-machê, um palco de teatro cheio de gessos e isopores pintados, que magicamente se desdobra como um livro pop-up toda vez que eles dobram uma esquina, atravessam uma pontezinha, cruzam um umbral.
 
Gosto de ver filmes em cenários construídos que guardam apenas um mínimo de verossimilhança urbana (ruas onde passam ônibus ou carros, p. ex.) e funcionam como um vasto bolo-de-noiva cheio de passagens e aberturas por onde os personagens se deslocam, conversando, meio que inadvertidos diante daquela imitação de cidade.

 
Uma cidade que não é tão irrealista assim. O cinema italiano do pós-guerra é todo feito de ruínas. Paredes incompletas, casas com uma banda arrancada, muros com passagens abertas à bruta; e muitos, muitos terrenos baldios, vazios, extensos, no meio de um bairro com muita gente e tráfego... 

É preciso um certo distanciamento e visão retrospectiva para entender que dez anos atrás, naquele terreno devoluto, havia prédios, casarões, edifícios onde caíram bombas, onde lavrou o fogo, e onde, por fim, os tratores vieram e limparam tudo. A cidade varreu para longe o próprio entulho, e recomeçou.
 
Le Notti Bianche guarda por um lado aquela urbanização medieval que toda cidade italiana tem, seus bequinhos tortuosos, as calçadas que mudam de nível de dez em dez metros, as pequenas arcadas que dão acesso a ruelas laterais, alguns degraus que sobem, outros degraus que descem, ruas que fazem voltas e ziguezagues porque cada casa nova, feita ali há mil anos, ia entortando a rua em outra direção.


E em cima disso se construiu esse perfil pós-guerra, ruínas com fogueiras acesas, paredes derreadas onde dorme gente enrolada em mantas, canais com uma água oleosa e lenta onde os namorados deslizam seu barquinho. 


Visconti pega uma das histórias mais românticas, mais afetivas, mais lovistóri que Dostoiévski escreveu, e a transporta para um ambiente onde nosso olhar não distingue direito – por entre tanta névoa, tanto cinza, tanto halo luminoso, tanto reflexo – o que é real e o que está sendo visto apenas pelo casal de namorados. Não duvidaria se me dissessem que Francis Coppola viu um dia esse filme e começou nesse momento a imaginar o que se tornaria One From the Heart.

 
Cenografia (Mario Chiari) e fotografia (Giuseppe Rottuno) são as melhores coisas deste filme, embora o casal de atores se comporte com um encantamento encabulado de ponta a ponta da narrativa, Mastroianni com sua mistura de intensidade e finura, Maria Schell com um sorriso luminoso, sorriso tão insistente que acaba nos revelando o quanto a personagem está nervosa. O francês Jean Marais, com seu porte leonino e inexpressivo, aparece no papel do desmancha-prazeres.


A música é de Nino Rotta, e é bela, mas seu melhor momento é quando Marcello e Maria vão a um café e há uma longa cena de música e dança, que começa com “Mulher Rendeira” (ecos do sucesso de O Cangaceiro em Cannes, poucos anos antes); depois, um rock sacudido e coreográfico (indício da invasão norte-americana do pós-guerra) arranca o casal da mesa e os dois se soltam no salão; e a cena termina com mais uma canção dolente, de dançar agarradinho. Uma sequência se poucos diálogos onde o casal passa por climas diferentes e sucessivos, energizados pela canção “diegética” com que o mundo os assalta.
 
O filme está disponível (legendado) no YouTube:




"O Cangaceiro" (="Mulher Rendeira"), creditado, tal como na gravação original do filme homônimo, a Zé do Norte (Alfredo Ricardo do Nascimento)

 







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