quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

4666) Minhas Canções: "Balada de Robert Johnson" (21.1.2021)



Quando comecei a fazer meus shows mambembes no Nordeste, de 1979 em diante, eu costumava explicar, antes de cantar uma música, que minhas canções pertenciam a alguns gêneros de música folclórica inventados por mim: batuque apocalíptico, baião filosófico, rock repente, bolero brechtiano, embolada comportamental, blue etílico...

Quando vim para o Rio em 1982 descobri que existia aqui uma banda chamada Blues Etílicos, graças à fatalidade telepática que faz com que indivíduos parecidos, com idéias-fixas parecidas, tenham idéias parecidas.

Passaram-se alguns anos e acabei me tornando amigo da banda, principalmente do gaitista Flávio Guimarães, um apaixonado pela música nordestina, pelos ritmos populares do Nordeste, e que já gravou inúmeros trabalhos juntando a emoção melódica do blues e os temas do sertão ou da zona da mata.

Certa vez eu conversava com Michael Grossmann, norte-americano radicado em São Paulo, que estava ajudando a produzir o novo disco solo de Flávio. Falávamos de nossa admiração em comum por Robert Johnson, o bluesman lendário que morreu jovem e deixou apenas um pequeno número de canções gravadas.

Eu ouvi muito essas canções no elepê King of Delta Blues Singers, na famosa “Casa 9” carioca onde durante alguns anos moraram Lenine, Ivan Santos, Alex Madureira, Júlio Ludemir e vários outros visitantes esporádicos, entre os quais Pedro Osmar e eu próprio.


Sugeri a Michael escrever um cordel contando a vida de Robert Johnson, e que a canção resultante fosse gravada por Sebastião da Silva, um cantador de quem eu era amigo desde os idos do Congresso de Violeiros de Campina Grande nos anos 1970. Michael tinha uma enorme coleção de elepês de cantoria, trazia cantadores ao seu apartamento de vez em quando, e era também amigo de Sebastião; topou na hora.

Escolhi desde logo o formato da décima composta por uma quadra e dois tercetos (4-3-3), com esquema de rimas ABCB-DDE-FFE. É uma décima muito usada pelos poetas do Vale do Pajeú, e diferente da décima tradicional com que se glosam motes, cujas rimas seguem o esquema ABBAACCDDC.

A música foi composta em novembro de 2000, e gravada no mesmo mês, num estúdio de São Paulo. Na mesma sessão, compusemos e gravamos outra música, “Destilaria”, que viria a aparecer apenas anos depois, noutro disco do Blues Etílicos. Eu gravei um dos violões; o outro foi de Otávio Rocha.

 

A “Balada de Robert Johnson” foi lançada no CD , Navegaita (2003). ficou um primor de gravação, pela interpretação intensa de Sebastião da Silva, com sua voz metálica e expressiva, a gaita de Flávio, o baixo acústico, os efeitos de guitarra slide de Otávio. Tornou-se um número habitual nos shows de Flávio, e cheguei a cantá-la no palco algumas vezes, acompanhado pela banda, no saudoso “Mistura Fina” da Lagoa.

Não demorou muito para que ela aparecesse no YouTube, em videoclips que receberam variadas edições, com imagens colhidas de filmes antigos sobre o blues do Mississipi.

https://www.youtube.com/watch?v=bF0SHbnqvpM&ab_channel=142857als


BALADA DE ROBERT JOHNSON

(Braulio Tavares e Sebastião da Silva)

(versão original completa)

 

 

1

Seu mundo era rutilância

seu mundo era escuridão

seu nome era Robert Johnson,

cantador doutro sertão.

Vinte e sete anos vividos

lá nos Estados Unidos

passou, veloz como a luz...

Naquela terra sombria

onde a tristeza e poesia

se dá o nome de blues.

 

2

Sua mãe teve onze filhos,

seu pai ele nunca viu.

O mundo em que foi criado

lembrava muito o Brasil.

Era neto de escravos,

dos negros fortes e bravos

colhedores de algodão.

Nunca pisou numa escola:

escreveu com a viola

e leu com o coração.

 

3

Dizem que foi o Diabo

quem lhe ensinou a tocar,

em um encontro marcado

numa noite sem luar.

Cruzando as estradas tortas

daquelas veredas mortas

chegou  na encruzilhada:

veio com a mão vazia

e partiu com melodia,

ponteio, rima e toada.

 

 

4

Outros garantem que é lenda

que o Diabo não existe,

que Johnson cantava o blues

só por ser poeta e triste.

Empunhava o instrumento,

recitava um sentimento

na sua vida andarilha;

e a tristeza era uma fera,

um cão negro, uma pantera

farejando a sua trilha...

 

5

Correu estradas de ônibus,

de caminhão ou de trem,

ora cantando sozinho

ora em dupla com alguém.

Andava dias inteiros

ao lado dos companheiros

sob o sol mais escaldante,

porém sempre se mantinha

vestido com toda linha

bem-cuidado e elegante.

 

 

6

Tinha o dom de encantar

a quem estivesse vendo

sua voz chorando um blues

e seu violão gemendo.

Na luz mortiça dos bares

com uma troca de olhares

conquistava um novo amor,

e aquela mulher vadia

nessa noite lhe trazia

mistério, prazer e dor.

 

 

7

Buscando uma namorada

procurava as mais feiosas:

as mulheres solitárias,

carentes e carinhosas.

A mulher que o aceitava

com todo gosto lhe dava

o corpo, a casa e a cama.

E ele deixava que ela

julgasse ser a mais bela

na ilusão de quem ama.

 

 

8

Uma noite numa festa

tocava de madrugada

e começou um namoro

com uma mulher casada.

Sedutor e seduzido,

cantava com o sentido

naquele corpo moreno,

quando um copo alguém lhe deu:

ele pegou e bebeu

sem saber que era veneno.

9

Foi como um rio de fogo

que lhe desceu na garganta,

mas a paixão era muita,

e sua sede era tanta!

Passou-se mais de uma hora,

e enquanto o povo lá fora

bebia, ria e dançava,

por dever de cantador

ele gemia de dor

e fingia que cantava.

 

 

10

Saiu dali carregado

para o quarto da pensão;

morreu e deixou somente

a mala e um violão.

Não levou fama nem glória

não deixou nome na história

não levou riso nem mágoa...

Foi um sopro de poeira,

uma nuvem passageira,

um nome escrito na água.

 

 

11

Foi assim que Robert Johnson

passou pelo nosso mundo:

brilhou durante alguns anos,

apagou-se num segundo.

Não deixou seu nome escrito

no mármore, no granito,

nas armas ou nos brasões.

O que deixou para nós

foram os versos e a voz

e vinte e nove canções.

 

Repete:

O que deixou para nós

foram os versos e a voz

e vinte e nove canções.

 







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