4662) "Mank" e a via-crucis dos roteiristas (9.1.2021)
O filme Mank
(2020) de David Fincher, em exibição no Netflix, conta a verdadeira via-crucis
que foi a escritura do roteiro inicial do filme Cidadão Kane por Herman Mankiewicz, por encomenda de Orson Welles.
Era a época dos grandes estúdios comandados por
milionários: Samuel Goldwyn, Louis B. Mayer, Adolph Zukor, David O. Selznick,
Harry Cohn, Darryl F. Zanuck e muitos outros. Cada um com um perfil diferente,
uma cabeça diferente, mas todos “virados num traque” para criar a gigantesca
máquina de fazer dinheiro que foi o subúrbio losangelino chamado Hollywood.
Esses produtores eram geralmente, como tantas vezes
acontece em variadas indústrias, migrantes de origem, workaholics, intuitivos, sem nenhuma
sofisticação intelectual, mas vinham de uma camada mais ou menos popular
(pelo menos na geração dos seus pais) e compreendiam intuitivamente o gosto popular,
seus valores, seus preconceitos, suas fantasias, suas limitações.
Erravam muito, acertavam muito, ganhavam fortunas,
perdiam fortunas, e tenho hoje pra mim que ler a história de suas vidas e de
suas realizações não é menos interessante do que ler as vidas e realizações de
Jean-Luc Godard ou Luís Buñuel. Era uma indústria cultural em formação, e quem a
formou em grande parte foram esses produtores, truculentos, atrevidos,
avarentos, limitados, ansiosos, capazes de mancadas homéricas e de iluminações de
gênio. Não é fácil investir na criatividade de um artista quando não se tem, como eles, condições intelectuais de entender com segurança o que aquele artista faz.
Não era muito fácil a um produtor assim compreender o que se passava na cabeça de pessoas como Herman Mankiewicz ou Orson Welles.
Herman Mankiewicz era um típico roteirista hollywoodiano,
com origem na imprensa escrita e sua tradição de escrever com rapidez e
vivacidade. Cheio de energia, de leituras vastas e desorganizadas, memória de
elefante, grande improvisador, o rei da resposta rápida e da língua ferina.
Pontificava no meio de um grupo de “gatilhos rápidos” mostrados en passant no filme, como Ben Hecht e S.
J. Perelman.
O lado B de Mank, fartamente descrito e comentado no
filme, eram a bebedeira e o vício no jogo, que se juntaram para sabotar sua
carreira e matá-lo precocemente aos 55 anos.
Mank conta a
criação do roteiro de Cidadão Kane do
ponto de vista dele, e não do de Orson Welles, cujo ego crescia na razão direta
do quadrado de sua circunferência abdominal. A briga dele e de Mank sobre “quem
afinal escreveu o roteiro do filme” está documentada, pelo que sei, em dois textos
opostos.
A favor de Mank há o ensaio de Pauline Kael “Raising
Kane”, 1971 (no livro Criando Kane, 2000,
Ed. Record, trad. Marcos Santarrita), cuja leitura aconselho independentemente
dessa questão (que hoje é uma questão menor). Contra ele, a resposta (que dizem
ser furibunda; não li) de Peter Bogdanovich, que toma o partido de seu amigo
Welles no artigo “The Kane Mutiny” (1972).
Aqui, uma entrevista de Bogdanovich onde ele questiona o
artigo de Kael (e, por tabela, o roteiro do filme de Fincher):
https://decider.com/2020/12/10/peter-bogdanovich-who-really-deserves-credit-for-citizen-kane/
Bogdanovich tem um argumento irrespondível: “Orson
reescrevia as peças de Shakespeare, por que não reescreveria um roteiro de
Mank?...” Em todo caso, o filme é ótimo quando mostra o derradeiro grande
esforço e a derradeira grande obra de um homem talentoso e decadente. Durante
os meses em que esteve preso à cama, com a perna e o quadril no gesso devido a
um acidente de carro, Mank escreveu o roteiro de Cidadão Kane, ou pelo menos a primeira versão dele. Segundo Pauline
Kael, o roteiro entregue por Mank após três meses (engessado na cama e bebendo
uísque escondido) tinha 325 páginas, e o roteiro final de filmagem usado por
Welles tinha 155.
É essa a história do filme: um homem famoso e alcoólatra de
42 anos escrevendo um roteiro para o filme de estréia de um diretor “menino
prodígio” de 25.
O mais impressionante em Mank são as condições em que ele escreveu o roteiro que resultou
num grande filme. Welles mexeu? Sem dúvida, mas Welles também reconheceu a
contribuição de Mank. Bêbado, dopado de remédios, todo engessado em cima de uma
cama, num rancho afastado no meio do deserto (para não sofrer distrações),
vigiado o tempo todo por uma secretária e uma enfermeira...
“Uma das coisas que mantinham os amigos de Mank fiéis a
ele,” disse Welles anos mais tarde, “era a sua tremenda vulnerabilidade. Ele
gostava de toda a atenção que recebia por ser aquela grande, aquela monumental
máquina de auto-destruição.”
As condições de trabalho de Mank para escrever Kane me trouxeram à lembrança os relatos
de um trabalho parecido, mas mais obscuro, realizado poucos anos depois, e
também sob a supervisão do polêmico John Houseman (o “vigia” de Mank). Foi a criação do roteiro de Blue Dahlia por Raymond Chandler, ao que
parece a única história de Chandler criada diretamente para o cinema.
Chandler estava ganhando 1.000 dólares por semana, em
janeiro de 1945 (seriam cerca de 14 mil dólares hoje), para fazer esse roteiro.
O estúdio estava em pânico porque as filmagens já tinham começado e o astro
principal, Alan Ladd, estava com data marcada para ir lutar na guerra. Estavam
rodando um filme caro sem saber como ia terminar, porque Chandler estava
criando a história em ordem cronológica (e começou a escrever – era uma
história de mistério policial – sem saber quem era o criminoso).
A tensão foi se acumulando e Chandler bebendo. O estúdio,
em desespero, ofereceu um bônus de 5 mil dólares se ele entregasse o roteiro a
tempo. Um final que ele conseguiu armar para a história mostrava o criminoso
como sendo um veterano de guerra, e a censura da época não gostou. Voltaram à
estaca zero. Chandler bebia cada vez mais e escrevia cada vez menos.
Deixou de ir escrever no estúdio e exigiu trabalhar em
casa (o que era contra o rígido regulamento dos produtores). Duas limusines
ficavam de plantão na rua, para levar as páginas que ele escrevia, além de ir
buscar médicos e enfermeiras para ele e para sua esposa Cissy (que tinha uma doença
pulmonar grave e era semi-inválida).
Tom Hiney, em sua biografia de Chandler, diz que a rotina
diária de trabalho era assim. Chandler enchia a cara de uísque. Perdia os
sentidos. Acordava. Tomava uma injeção de estimulante. Ditava alguns diálogos
do filme. Perdia os sentidos novamente.
O biógrafo de Billy Wilder, Maurice Zolotow, afirmava que
esse esquema criado por Chandler foi “uma farsa de tal ousadia e tal
genialidade que velhos roteiristas ricos contam essa história até hoje cheios
de admiração, enquanto bebericam seus martinis nos fins de tarde no pátio de
sua mansão em Brentwood.”
O filme ficou pronto, o roteiro foi indicado ao Oscar, Chandler embolsou uma verdadeira fortuna – e
aí foi que bebeu mesmo.
Vale a pena ficar rico, e viver assim?
Comentando a obra de Mankiewicz, Orson Welles lembrou a
Peter Bogdanovich a cena em Citizen Kane
na qual um velho jornalista, Bernstein, conta a visão fugaz que teve, muitos
anos atrás, de uma moça, ao cruzar o rio Hudson numa balsa. Ela estava com uma
sombrinha branca, não chegou a avistá-lo, mas, dizia ele, “em todos estes anos
não houve um dia sequer que eu não me lembrasse dela.”
“Isto é Mank,” disse Welles, “e este é meu momento
preferido no filme inteiro.”
Um comentário:
O filme é bom, sem esgotar o assunto nem o espectador.
No livro Este é Orson Welles, do Peter Bogdanovich,
Orson diz que se fosse pro Inferno e só pudesse lembrar
uma única cena de tudo que fez, seria essa da barca
de Nova Jersey.
E desde que vi Cidadão Kane pela 1ª vez, há mais de 55 anos,
esse trecho também não me sai da cabeça. Talvez por isso
tenha revisto infinitas vezes.
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