É impossível falar sobre este livro sem dar um spoiler, sem revelar um detalhe essencial da trama. Um detalhe que surge de surpresa, a certa altura.
Então: o meio da minha história acontece no verão de 1996. Nessa época, nossa família já havia minguado até atingir o formato sugerido em nossos velhos filmezinhos com câmeras domésticas: eu, minha mãe, e, fora da imagem mas evidentemente presente, meu pai. Em 1996, haviam se passado dez anos desde que eu vira meu irmão pela última vez, e dezessete desde que minha irmã desapareceu.
(pag. 5, trad. BT)
Karen Joy Fowler é conhecida do grande público pelo
grande sucesso que teve O Clube de
Leitura Jane Austen (2004). Eu cheguei a ela por vias transversas. Fui seu
aluno na Clarion Workshop em 1991, em Michigan, onde durante uma semana ela
orientou a turma e criticou nossos contos. Quando alguns colegas me disseram
que meu conto “Stuntmind” não tinha enredo, ela me disse que sim, e que o nome
daquilo era “enredo revelatório” (“revelatory plot”) – o que me consolou
bastante.
We Are All... tem
também um enredo revelatório, pois embora aconteçam mil peripécias (bebedeiras,
mortes, fugas, prisões, atentados terroristas) o cerne da história é a
revelação gradual do passado da narradora. O que aconteceu com sua irmã Fern é,
num certo sentido, de cortar o coração.
A sensação mais forte deixada nesse livro, contudo, é que
com ou sem spoiler, com ou sem revelação bombástica, Rosemary considera Fern
sua irmã real, da primeira à última página do livro. Foram criadas juntas,
cresceram juntas, dividindo mil coisas. Há páginas e páginas com relatos de
travessuras, de problemas, de brincadeiras, de birras, de exercícios, de
compartilhamento de experiências, de momento em que duas “pessoas” sentem-se
como se estivessem lendo o pensamento uma da outra, e isso cria entre elas um
vínculo difícil de desmanchar futuramente.
Fern vive dentro da casa, sempre supervisionada pelo
Professor e pelos alunos de graduação em Psicologia, que vêm a residência deles
todos os dias, tomando notas sobre Rosemary e Fern. A garota cresce dentro
disso. Ter pai cientista é normal. Ter estudantes dentro de casa é normal. Ter
um irmão menino e uma irmã macaca é normal. Os laços de empatia que se criam
entre ela e a irmã desencadeiam toda a transformação porque passa a vida de
Rosemary (e de seu irmão Lowell, o sumido, que reaparece na segunda metade do
livro).
O romance recebeu o Pen/Faulkner Award, foi finalista do
Booker Prize e foi indicado para o Prêmio Nebula de Ficção Científica. Isto
levanta a última questão que proponho aqui: é um livro de ficção científica? O
livro conta uma experiência científica um tanto ousada (embora não imaginária:
um apêndice comenta os vários casos semelhantes já ocorridos), e que produz
consequências inesperadas na vida dos envolvidos. Questões científicas são
discutidas várias vezes, a sério, no transcorrer da história.
Para mim, o que falta ao livro para que eu o considere FC
(caso isto seja importante) é a ausência de elementos fantásticos e
especulativos. É uma ficção realista sobre procedimentos científicos, e suas consequências
sobre os humanos que deles participam; mas falta o estranho, o bizarro, o
sobrenatural, o impossível. O livro vai até um limite, e não o transpõe.
Deveria transpô-lo? Para mim, não: é um excelente livro do jeito que já é, e
não sinto a menor necessidade de que alguém mexesse nele para poder chamá-lo de
FC.
Não pertence ao gênero popular chamado “ficção científica”,
mas é um excelente livro de ficção sobre a ciência.
O melhor livro que li de Karen Joy Fowler, inédito no
Brasil, é Sarah Canary (1991),
história ambientada por volta de 1860, no interior dos EUA, onde surge uma
mulher misteriosa que não entende inglês e parece não saber falar, mas ao mesmo
tempo uma intuição misteriosa a conduz numa jornada através da América. O
crítico John Clute o considera “uma das melhores histórias de primeiro contato
com alienígenas”. É uma história bastante próxima ao conto “Um Moço Muito
Branco” (1962), de Guimarães Rosa.
Um comentário:
Grandes dicas, BT, fiquei com muita vontade de conhecer a autora.
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