Alguns livros de autores brasileiros eu acabei lendo
quase em primeira mão, por uma questão de vizinhança. Foi o caso do romance de
minha irmã Clotilde Tavares, De repente a vida acaba (Natal: M3, 2019),
com quem tive o primeiro contato quando ele não passava de cadernos cheios de
anotações manuscritas e laudas impressas. É a história de duas mulheres muito parecidas
e muito diferentes, uma toda professoral e séria, a outra toda farrista e
aprontadora. No meio das duas, um manuscrito que pode ter sido e pode não ter
sido escrito por uma ou pela outra; mas o que cativa mesmo é a maneira largada
de escrever, a profusão de detalhes ora hilários ora arrepiantes.
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/04/4571-de-repente-vida-acaba-1842020.html
Da Paraíba me chegou às mãos Os Sonhos do Cão Bravio de João Matias, que pelo que me consta
ainda não chegou da gráfica. O autor já havia publicado os contos de O Vermelho das Hóstias Brancas (Campina
Grande: Ed. do Autor, 2009). Esta coletânea traz contos sobre uma Campina
Grande tenuemente disfarçada por trás de um pseudônimo, narrando a evolução de
um centro urbano desde um povoado até um centro comercial com grande feira e
grande número de trabalhadores chineses.
Os contos têm uma crueza realista que não os impede de
triscar de vez em quando na fronteira do fantástico ou pelo menos do insólito.
Há uma violência latente nessas histórias onde os conflitos, longe de serem
apaziguados, são exacerbados até o fim, meio que naquela filosofia “vamos
aumentar isso até explodir tudo, e pronto”.
Essa perspectiva temporal tem uma fisionomia diferente em
O
Espelho dos Girassóis (Uauá: JM Gráfica e Editora, 2020) de Maviael
Melo, onde o poeta e compositor lança mão de uma viagem mental da protagonista
ao fundo de sua memória, onde episódios do passado vão sendo reconstituídos e
revividos de forma diferente a cada vez que são acessados. Nas andanças de uma
mulher (simbolicamente projetadas na imagem do espelho) por sua cidade, emergem
os fatos do passado, aventuras de uma infância vivida entre o medo e a
violência.
Muito parecido, e muito diferente, é o Amália
atrás de Amália (São Paulo: Patuá, ) de Marco Aqueiva. Conversei
com o autor em São Paulo (pela primeira vez) e trocamos nossos livros, três
dias antes da morte dele, o que me impressionou e certamente tingiu a leitura.
É uma novela intensa, de prosa eletrificada, ambientada num futuro próximo com
traços cyberpunk mas sem o arcabouço realista da FC comum. Tem uns traços
absurdistas que o aproximam (sem o viés do humor satírico) de outro livro da
mesma coleção “Futuro Infinito”, o Back
in the USSR de Fábio Fernandes, que li e comentei ano passado. É um
mergulho vertiginoso de personagens entrevistos rapidamente, por situações
recorrentes e ambientes de pesadelo. A prosa de Marco Aqueiva é segura,
implacável, o que reforça a melancolia da perda de uma voz nova na nossa
literatura fantástica.
Essa sombra da perda pairou também durante a leitura (no
mais, muito agradável) de Geneton: Viver de Ver o Verde Mar (Recife:
CEPE, 2019) de Ana Farache e Paulo
Cunha, a biografia do jornalista Geneton Mores Neto (1956-2016). Livro de
amigos falando de um amigo falecido é sempre uma cilada para a objetividade de
qualquer leitor. Conheci esse trio quando eram todos jovens jornalistas (e
superoitistas) no Recife, e cheguei a eles através do idem-idem Amin Stepple,
que também “já nos deixou” um ano atrás. Acompanhei seus sonhos à distância,
como quem vê um filme 16 projetado numa tela 35.
Como diz Rômulo Azevedo, que é da mesma tribo, chega uma
época na vida em que a gente encontra os amigos com mais frequência nos
corredores de hospital do que nos restaurantes. É bom ligar o sinal de alerta
também quando a gente começa a ler biografias póstumas de caras que eram mais
novos do que a gente.
Geneton teve, no meio de toda aquela geração talentosa (à
qual associo também Marcos Cirano, Juliana Coentro, Beth Salgueiro, Ricardo
Carvalho, Lula Falcão, tantos e tantos outros), a chance de adquirir um poder
que jamais imaginaríamos naqueles anos distantes. Foi editor do Fantástico, da GloboNews, entrevistou
celebridades internacionais e presidentes da República. Tinha o dom da pergunta
direta, incômoda, feita de cara limpa, objetivamente, e que sempre extraía do
entrevistado, fosse quem fosse, uma tentativa de responder no mesmo tom. (E
muitas vezes, boto minha mão no fogo, era a primeira vez que alguém fazia
aquela pergunta ao figurão diante de uma câmera ligada.)
O livro de Ana e Paulo reconstitui a vida pessoal de um
amigo, os sonhos em comum, as dúvidas profissionais, a ralação incansável de
quem sobe a ladeira da primeira metade da vida. Registra os baques, celebra as
pequenas vitórias, as preciosas alegrias.
Também do Recife, mas em outra frequência modulada da
memória, vem Meu Peito é Feito de Festa (Recife: Zoludesign, 2019) de Paulo
Braz, um campinense adotivo que ao se radicar no Recife virou promotor de
festas, o que de repente é muito mais interessante do que ser promotor de justiça. Dono de
bar e restaurante, organizador de carnavais, reveillons e festas temáticas,
Paulo Braz é um dos muitos que fizeram de Recife uma cidade cheia de música e
alegria. Como nunca morei lá, coube ao Acaso me pegar nas pontas dos dedos e de
vez em quando me depositar no meio de alguma das suas “Noites Olindenses” ou madrugadas do Calypso Club.
Pensando naqueles tempos de vinte ou trinta anos atrás,
sinto a tentação pueril e pouco generosa de afirmar que nenhuma geração foi
mais alegre do que a nossa. É mentira. Alegria é como água corrente, sempre
encontrará caminho; ela sempre se infiltra, sempre brota e fertiliza. Mas talvez poucas gerações tenham confiado, tanto quanto
a nossa, que o futuro viria espontaneamente. O resto é História.
Um comentário:
O livro de Clotilde Tavares também está na minha lista de melhores livros lidos em 2020! Recomendo!
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