domingo, 29 de março de 2020

4564) Bob Dylan e "Murder Most Foul" (29.3.2020)




O vídeo, com a letra:

Bob Dylan acaba de lançar uma canção nova; não um álbum novo, um disco novo, apenas uma canção. Voltamos aos tempos dos anos 1950, quando as canções eram lançadas individualmente, em discos “compactos”, com a faixa importante no lado A e um complemento qualquer no lado B.

“Murder Most Foul” tem 17 minutos e tanto, e é 23 segundos mais longa do que a recordista anterior na obra de Dylan, “Highlands” (Time Out Of Mind, 1997). Não venham me dizer que esses “recordes” não são propositais.

A música inteira é um monólogo introspectivo de Dylan, enquanto dedilha o piano, e um violoncelo e alguma percussão fazem ornamentações discretas ao fundo. É uma canção política, tendo como tema o assassinato de John Kennedy em 1963. Mas não é uma canção política “de dedo em riste”, como “Hurricane”, que era uma canção vibrante, gritada, cuspida na cara das autoridades. É uma espécie de ajuste de contas de um cara consigo mesmo, catando cacos, juntando o que sobrou de sua casa depois de um incêndio.

“Murder Most Foul” é um poema recitado com fundo musical, nada mais do que isto, sem nenhuma pretensão a interpretação vocal, arranjo, estrutura. Não é uma coisa nova. Dylan já fazia isso em "If Dogs Run Free”, um improviso poético-pianístico,  em tom jazzístico, gravado em um só take no álbum New Morning (1970). Aquele mesmo álbum traz um recitativo mais solene, mais cadenciado: “Three Angels”, também uma canção não-cantada.


Talvez a melhor experiência de Dylan nessas canções recitadas seja “Brownsville Girl” ou “Danville Girl”, em algumas versões ao vivo (Knocked Out Loaded, 1986), uma parceria com Sam Shepard, autor da longuíssima letra que faz uma ponte com a canção de 2020, porque começa dizendo: “Eu estava tentando me lembrar de um filme que vi com Gregory Peck, onde um cara o mata a tiros pelas costas”.

Mas “Brownsville Girl” também não tem nada a ver com esta canção nova, afora isso, porque é uma história de amor misturada com road movie, tipo Coração Selvagem de David Lynch. É uma canção “pra fora”, vigorosa, cantada como se o cantor estivesse diante de dez mil pessoas.

Uma das coisas marcantes de “Murder Most Foul” é esse tom de voz “pra dentro”, onde o cantor parece estar sozinho num estúdio enorme, tendo os outros músicos a dez metros de distância. Eles tocam discretamente, na penumbra, para não atrapalhar o Autor, que passeia os dedos pelo piano enquanto seus olhos acompanham uma dúzia de folhas manuscritas espalhadas em volta.


O piano aqui é diferente do piano floreado e despudoradamente musical que Al Kooper faz em “If Dogs Run Free”. É um piano meio distraído. Nós usamos o verbo “cantar” para exprimir uma ação clara, firme e concentrada, de quem entoa uma canção; mas temos o verbo “cantarolar” que exprime uma maneira descontraída, distraída e casual de fazer a mesma coisa.

Proponho, então, que o verbo “tocar” (=um instrumento musical) tenha como contrapartida análoga o verbo “tocarolar”, a ação de quem toca mas toca sem querer impressionar, sem se preocupar muito com exatidão.

Na última vez que vi Dylan ao vivo (Rio Arena, março de 2008) ele mal pegava na guitarra: tocarolava o teclado, em pé, num órgãozinho menor do que o órgão d’”Os Incríveis”. Maldo eu que exige menos esforço do que a guitarra, em se tratando de um septuagenário.

“Murder Most Foul” é uma canção septuagenária neste sentido de monólogo íntimo de quem dá balanço em coisas mal resolvidas, como um Riobaldo Tatarana tentando explicar por que motivo sua vida aparentemente tão próspera foi edificada sobre um cemitério-indígena de equívocos. Ou de um Hamlet monologando sem parar (“murder most foul” é uma fala do Fantasma, na peça) sobre o assassinato do seu Rei.


A voz de Dylan, nesta gravação, está parcialmente intacta, se a compararmos com os resmungos ininteligíveis dos shows mais recentes. Ao divulgar a música no Twitter, ele avisou que se tratava de uma canção gravada algum tempo atrás (“a while back”). Os fãs (é pra isso que existem fãs) situam o timbre vocal dele nessa faixa na época da gravação do álbum Tempest, de 2012, seu último lançamento de canções inéditas.

O formato da letra é o couplet, um dos mais tradicionais da poesia inglesa, linhas longas (10 ou 12 sílabas, geralmente) rimando AA-BB-CC-DD-EE... Chamo a isso um formato “aberto”, que não se fecha numa estrofe, mas pode ser prolongado indefinidamente em poemas com qualquer número de linhas.

Dylan encaixa esses versos numa melodia que tem a estrutura genérica do tradicional blue-de-12-compassos, o que lhe permite fechar estrofes, lançando mão da melodia, não do formato da letra. Uma linha melódica que aqui e acolá lembra “Not Dark Yet” (Time Out of Mind, 1997) em seus versos curtos, “Where Are You Tonight” (Street-Legal, 1978) nos mais atropelados. E muitas outras canções, claro. É um "templeite" pessoal dele.

Not Dark Yet:
https://www.youtube.com/watch?v=7JBHyE18L3o

Where Are You Tonight:
Falar em número de sílabas nos versos de Bob Dylan é mera força de expressão, porque justamente um dos pontos fortes de sua arte é a desobediência consciente e proposital a limitações desse tipo. Mesmo quando nos versos iniciais de uma canção ele propõe e segue uma contagem fixa, frequentemente as estrofes seguintes o mostram aumentando ou diminuindo essa contagem ao sabor dos versos. Para alguns é um verdadeiro sacrilégio – para quem tem, por exemplo, a formação rígida do cordel e da cantoria nordestina, onde o número de sílabas sempre tem que bater.

Dylan é um especialista em pegar esses formatos rígidos e diluir sua estrutura puxando-os para o caos silábico da prosa. É a maneira de cantar dos “talkin’ blues”, os blues canto-falados que ele tanto ouviu na meninice e reproduziu em seus primeiros discos, em faixas como “Talkin’ New York”, “Talkin’ World War III Blues” etc.


O modo de cantar de Dylan pode ser ilustrado por uma historieta nordestina que só tem graça dita em voz alta, mas vou tentar reproduzir. É a história de um grupo de beatas que sai para uma novena, em romaria, e no trajeto têm que subir e depois descer umas ladeiras. Lá vão elas cantando na subida íngreme, prolongando as sílabas:

As viiiiirge todas proclaaaaaama...
Tua gulora e fermosuuuuuuura...

Chegam no topo da colina, e aí cantam enquanto descem apressadamente:

És a rainha do povo,
aprotetoradessapopulaçãodopovodeNossaSenhora
(chegam no fim da ladeira)
...da Raiz!

Essa, mal comparando, é uma das artimanhas de Dylan como cantor. Ele se propõe uma base fixa de sílabas/notas em cada verso, e depois canta o que bem entende, esticando as sílabas quando não poucas, atropelando-as quando são muitas, e sempre dando um jeito (não me pergunte como) de parecer que elas se encaixam nas notas musicais pressupostas.



“Murder Most Foul” tem todos esses elementos de oralidade: versos de qualquer tamanho, letra mais recitada do que cantada, uma sensação pervasiva de uma música que não ficou totalmente pronta mas que o autor está registrando para não esquecer depois o feeling inicial que a criou. E a desconfiança de que aquilo é apenas um trecho de uma música ainda maior, da qual se perdeu o começo, e também o fim.

Tematicamente, é mais uma das “Canções de Assassinato e Denúncia” em que Dylan sempre foi excelente, usando fatos reais para criar uma pequena parábola dos tempos modernos: “The Lonesome Death of Hattie Carroll”, “Only a Pawn in their Game”, “Oxford Town”, “Ballad of Hollis Brown”, “Hurricane” etc.

Que ele tenha escolhido o catastrófico momento atual para lançá-la tem decerto algum significado. Dylan está no grupo de risco, tal como nós, seus marinheiros desde a primeira viagem. Pode ser um “parting shot”, uma forma de cair atirando. De mostrar que nem tudo foi dito ainda, e não o será jamais.










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