O vídeo, com a letra:
Bob Dylan acaba de lançar uma canção nova; não um álbum
novo, um disco novo, apenas uma canção. Voltamos aos tempos dos anos 1950,
quando as canções eram lançadas individualmente, em discos “compactos”, com a
faixa importante no lado A e um complemento qualquer no lado B.
“Murder Most Foul” tem 17 minutos e tanto, e é 23 segundos
mais longa do que a recordista anterior na obra de Dylan, “Highlands” (Time Out Of Mind, 1997). Não venham me
dizer que esses “recordes” não são propositais.
A música inteira é um monólogo introspectivo de Dylan,
enquanto dedilha o piano, e um violoncelo e alguma percussão fazem ornamentações
discretas ao fundo. É uma canção política, tendo como tema o assassinato de
John Kennedy em 1963. Mas não é uma canção política “de dedo em riste”, como
“Hurricane”, que era uma canção vibrante, gritada, cuspida na cara das
autoridades. É uma espécie de ajuste de contas de um cara consigo mesmo,
catando cacos, juntando o que sobrou de sua casa depois de um incêndio.
“Murder Most Foul” é um poema recitado com fundo musical,
nada mais do que isto, sem nenhuma pretensão a interpretação vocal, arranjo,
estrutura. Não é uma coisa nova. Dylan já fazia isso em "If Dogs Run
Free”, um improviso poético-pianístico, em
tom jazzístico, gravado em um só take no álbum New Morning (1970). Aquele mesmo álbum traz um recitativo mais
solene, mais cadenciado: “Three Angels”, também uma canção não-cantada.
Talvez a melhor experiência de Dylan nessas canções
recitadas seja “Brownsville Girl” ou “Danville Girl”, em algumas versões ao
vivo (Knocked Out Loaded, 1986), uma
parceria com Sam Shepard, autor da longuíssima letra que faz uma ponte com a
canção de 2020, porque começa dizendo: “Eu estava tentando me lembrar de um
filme que vi com Gregory Peck, onde um cara o mata a tiros pelas costas”.
Mas “Brownsville Girl” também não tem nada a ver com esta
canção nova, afora isso, porque é uma história de amor misturada com road
movie, tipo Coração Selvagem de David
Lynch. É uma canção “pra fora”, vigorosa, cantada como se o cantor estivesse
diante de dez mil pessoas.
Uma das coisas marcantes de “Murder Most Foul” é esse tom
de voz “pra dentro”, onde o cantor parece estar sozinho num estúdio enorme,
tendo os outros músicos a dez metros de distância. Eles tocam discretamente, na
penumbra, para não atrapalhar o Autor, que passeia os dedos pelo piano enquanto
seus olhos acompanham uma dúzia de folhas manuscritas espalhadas em volta.
O piano aqui é diferente do piano floreado e despudoradamente
musical que Al Kooper faz em “If Dogs Run Free”. É um piano meio distraído. Nós
usamos o verbo “cantar” para exprimir uma ação clara, firme e concentrada, de
quem entoa uma canção; mas temos o verbo “cantarolar” que exprime uma maneira
descontraída, distraída e casual de fazer a mesma coisa.
Proponho, então, que o verbo “tocar” (=um instrumento
musical) tenha como contrapartida análoga o verbo “tocarolar”, a ação de quem
toca mas toca sem querer impressionar, sem se preocupar muito com exatidão.
Na última vez que vi Dylan ao vivo (Rio Arena, março de
2008) ele mal pegava na guitarra: tocarolava o teclado, em pé, num órgãozinho
menor do que o órgão d’”Os Incríveis”. Maldo eu que exige menos esforço do que
a guitarra, em se tratando de um septuagenário.
“Murder Most Foul” é uma canção septuagenária neste
sentido de monólogo íntimo de quem dá balanço em coisas mal resolvidas, como um
Riobaldo Tatarana tentando explicar por que motivo sua vida aparentemente tão
próspera foi edificada sobre um cemitério-indígena de equívocos. Ou de um
Hamlet monologando sem parar (“murder most foul” é uma fala do Fantasma, na
peça) sobre o assassinato do seu Rei.
A voz de Dylan, nesta gravação, está parcialmente intacta,
se a compararmos com os resmungos ininteligíveis dos shows mais recentes. Ao
divulgar a música no Twitter, ele avisou que se tratava de uma canção gravada
algum tempo atrás (“a while back”). Os fãs (é pra isso que existem fãs) situam
o timbre vocal dele nessa faixa na época da gravação do álbum Tempest, de 2012, seu último lançamento
de canções inéditas.
O formato da letra é o couplet, um dos mais tradicionais da poesia inglesa, linhas longas
(10 ou 12 sílabas, geralmente) rimando AA-BB-CC-DD-EE... Chamo a isso um
formato “aberto”, que não se fecha numa estrofe, mas pode ser prolongado
indefinidamente em poemas com qualquer número de linhas.
Dylan encaixa esses versos numa melodia que tem a
estrutura genérica do tradicional blue-de-12-compassos, o que lhe permite
fechar estrofes, lançando mão da melodia, não do formato da letra. Uma linha
melódica que aqui e acolá lembra “Not Dark Yet” (Time Out of Mind, 1997) em seus versos curtos, “Where Are
You Tonight” (Street-Legal, 1978) nos
mais atropelados. E muitas outras canções, claro. É um "templeite" pessoal dele.
Not Dark Yet:
https://www.youtube.com/watch?v=7JBHyE18L3o
Where Are You Tonight:
Not Dark Yet:
https://www.youtube.com/watch?v=7JBHyE18L3o
Where Are You Tonight:
Falar em número de sílabas nos versos de Bob Dylan é mera
força de expressão, porque justamente um dos pontos fortes de sua arte é a
desobediência consciente e proposital a limitações desse tipo. Mesmo quando nos
versos iniciais de uma canção ele propõe e segue uma contagem fixa,
frequentemente as estrofes seguintes o mostram aumentando ou diminuindo essa
contagem ao sabor dos versos. Para alguns é um verdadeiro sacrilégio – para
quem tem, por exemplo, a formação rígida do cordel e da cantoria nordestina,
onde o número de sílabas sempre tem que bater.
Dylan é um especialista em pegar esses formatos rígidos e
diluir sua estrutura puxando-os para o caos silábico da prosa. É a maneira de
cantar dos “talkin’ blues”, os blues canto-falados que ele tanto ouviu na
meninice e reproduziu em seus primeiros discos, em faixas como “Talkin’ New
York”, “Talkin’ World War III Blues” etc.
O modo de cantar de Dylan pode ser ilustrado por uma
historieta nordestina que só tem graça dita em voz alta, mas vou tentar
reproduzir. É a história de um grupo de beatas que sai para uma novena, em
romaria, e no trajeto têm que subir e depois descer umas ladeiras. Lá vão elas
cantando na subida íngreme, prolongando as sílabas:
As viiiiirge todas proclaaaaaama...
Tua gulora e fermosuuuuuuura...
Chegam no topo da colina, e aí cantam enquanto descem
apressadamente:
És a rainha do povo,
aprotetoradessapopulaçãodopovodeNossaSenhora
(chegam no fim da ladeira)
...da Raiz!
Essa, mal comparando, é uma das artimanhas de Dylan como
cantor. Ele se propõe uma base fixa de sílabas/notas em cada verso, e depois
canta o que bem entende, esticando as sílabas quando não poucas, atropelando-as
quando são muitas, e sempre dando um jeito (não me pergunte como) de parecer
que elas se encaixam nas notas musicais pressupostas.
“Murder Most Foul” tem todos esses elementos de
oralidade: versos de qualquer tamanho, letra mais recitada do que cantada, uma
sensação pervasiva de uma música que não ficou totalmente pronta mas que o
autor está registrando para não esquecer depois o feeling inicial que a criou. E a desconfiança de que aquilo é
apenas um trecho de uma música ainda maior, da qual se perdeu o começo, e
também o fim.
Tematicamente, é mais uma das “Canções de Assassinato e
Denúncia” em que Dylan sempre foi excelente, usando fatos reais para criar uma
pequena parábola dos tempos modernos: “The Lonesome Death of Hattie Carroll”, “Only
a Pawn in their Game”, “Oxford Town”, “Ballad of Hollis Brown”, “Hurricane”
etc.
Que ele tenha escolhido o catastrófico momento atual para
lançá-la tem decerto algum significado. Dylan está no grupo de risco, tal como
nós, seus marinheiros desde a primeira viagem. Pode ser um “parting shot”, uma
forma de cair atirando. De mostrar que nem tudo foi dito ainda, e não o será
jamais.
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