quinta-feira, 20 de junho de 2019

4477) O fantasma e o mundo lacunar (20.6.2019)



(Shirley Jackson, em 1951)

Uma coisa que me incomoda às vezes com as histórias de fantasmas é que às vezes elas tendem a uma uniformização de explicações. O que é o fantasma? Ah, é a alma de alguém. A pessoa morreu mas a alma continua presa ao mundo material.

Acho a hipótese válida, não como explicação da realidade, mas como elemento capaz de gerar uma situação narrativa. Uma situação de drama. Ou de comédia. Uma história humana, enfim, e num universo onde coisas assim são possíveis.

Mesmo que esse universo não dure mais que o tempo dessa história.

O espiritismo kardecista – que, curiosamente, é mais uma coisa que Brasil e França compartilham de maneira especial, tal como ocorre com o culto a Santos Dumont – contamina com suas explicações muitas dessas histórias, que giram em torno das consequências morais da transposição do Umbral.

Todo fantasma é uma alma? Pode ser. Pode também ser uma materialização completa de uma pessoa, uma “alma” capaz de pegar num copo, beber água, empunhar um objeto, falar e ser ouvido por alguém.

Shirley Jackson, uma grande escritora, mais conhecida por “The Lottery” (1948) e “The Haunting of Hill House” (1959), tem um conto intitulado “The Lovely House” (1950).

Vou contar dando spoiler, porque apesar de ser uma história muito boa deve ser apenas “uma das 20 melhores de Shirley Jackson”. Tem muitas outras, melhores até, para quem não conhece.

Margaret é uma moça mediana que vai passar uns dias na imponente casa de campo da família de sua amiga Clara Montague. A época parece ser a da II Guerra.  A mansão tem salas e mais salas de obras de arte, de tapeçarias, de murais, de espelhos. É um museu vivo, onde vive o casal Montague e sua filha, e estão à espera do filho que está no exército.

Um lugar meio Downton Abbey, só que menos rico, e com apenas um trio de moradores.

Margaret (que está sempre achando que veste uma roupa inadequada), passa ali alguns dias inesquecíveis, porque a cada corredor e cada passagem há tesouros de arte em volta. A família a trata com fidalguia, com simpatia, tentando deixá-la à vontade.

Chega o filho deles, irmão de Clara. Vem fardado e acompanhado de um capitão, jovem como ele, mas mais lacônico e retraído. A família os recebe, em comitê. Todos falam ao mesmo tempo, dão pausa, depois desatam a falar de novo, riem, vão se descontraindo.

Nos dias seguintes, naquele clima lacônico e meio “vitoriano”, saem para passear, para fazer píquenique, os dois casais: Clara e o capitão; Margaret e Paul, o irmão da amiga. Todos são muito discretos, conversam cheios de reticências, de frases incompletas.

A história de Margaret é contada por ela em primeira pessoa, mas como está fora de seu ambiente e fica deslumbrada com tudo que vê (principalmente com o irmão da amiga, Paul) ela não consegue articular uma frase sequer que não seja um lugar-comum de banquete-em-família ou uma pálida tentativa de esclarecer uma dúvida, que passa despercebida.

É aquele ambiente parecido com A Era da Inocência ou com aqueles intermináveis mal-entendidos de country house nas novelas de Henry James. Viver entre aquelas pessoas atentíssimas era reconhecer a importância crucial de rituais, linguagens, parâmetros e referências.

Algumas peripécias depois, o exército chama Paul de volta e ele lamenta não poder ficar mais tempo no seio da família, que tanto ama. Margaret ergue diante dele algumas esperanças de reencontro futuro, como pipas num dia sem vento.

Quando Margaret desce, ao amanhecer do dia da partida, com o automóvel já resfolegando à porta e as malas enfileiradas no vestíbulo, vê no saguão o casal idoso, donos da casa, a amiga Clara e o capitão, que se dirige ao casal com firmeza, mas com simpatia, dizendo que as tapeçarias estão se desfiando, há vidraças quebradas, etc., e que é bom cuidar melhor da casa.

“Sim, meu filho,” diz o casal, e dá suas justificativas.

E Paul? Quem é Paul?, pergunta-se Margareth, e esta é a linha crucial de todo o conto.

O spoiler é parcial, porque na história há muito mais coisas, mas ela propõe, como várias outras histórias, uma intersecção de universos que vai além da jornada abúlica, ritualística, da alma cristã que ficou presa a um objeto, ou aposento, ou edifício, e não consegue decolar rumo à eternidade.

Sem precisar negar a existência da alma cristã, que nem é mencionada, Shirley Jackson conta-nos um mistério de tempos que coexistem sem que todo mundo o perceba.

Pode haver universos nas lacunas um do outro, como aquelas peças do xadrez a quem é permitido um movimento muito além do mero dia a dia, do avançar-uma-casa da escala de tempo em que vivemos. Seres que têm no Tempo um movimento mais extenso, até mesmo oblíquo, até mesmo em 3-D, como o cavalo...

Shirley Jackson não teoriza isso, nem precisa, nem faz falta, até porque bem de acordo com o espírito meio anacrônico daquele paraíso bucólico (visto através dela, e na última página através dos olhos do capitão) as coisas são enxergadas de maneira impressionista, numa sociedade refinada e obsoleta, onde as pessoas se comunicam por duplos-sentidos, formalidades, e indicações veladas.

Num mundo assim, fica cada vez mais difícil estabelecer um conceito tão básico quanto o do “realidade consensual”.












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