Uma das pragas editoriais mais daninhas é aquela
recomendação: “Tire isso, o leitor não vai entender”. É uma recomendação que
vai das salas dos editores até as oficinas literárias, passando pelas mesas de
bar e pelas famosas “dicas de escritores experientes aos escritores jovens e
ansiosos pelo sucesso”.
“Tire isso, o leitor não vai entender.” Só falta explicar melhor: “O leitor é burro
e, mesmo que nem todos o sejam, você deve escrever pensando no mais burro de
todos. É assim que a televisão funciona.”
E é mesmo – por isso a televisão é uma coisa tão burra e tem tanto
sucesso.
O leitor tem que ter a humildade de saber que está
abrindo um livro para – entre mil outras coisas – aprender. Ficar sabendo o que
não sabia. Ter acesso ao que lhe era desconhecido. Tomar conhecimento de um
hábito social, de uma paisagem obscura, de uma palavra que vai ter que checar
no dicionário. O leitor está ganhando coisas, e acha ruim?
Isso me vem à cabeça sempre que estou lendo um livro de
50, 100 anos atrás. Livros que estão repletos de pequenos detalhes do cotidiano
que faziam parte da vida das pessoas naquele tempo e lugar, mas que podem soar
estranhos ao leitor de hoje.
O Leitor de Hoje! Tem horas em que a gente o vê como um ditadorzinho
ignorante e mimado, que esperneia de descontentamento quando se vê diante da
primeira coisa que não entende.
Esse diapasão mental de todas as pesquisas mercadológicas
destinadas a produzir O Livro Que O Leitor De Hoje Será Incapaz De Largar –
aquilo que os resenhadores norte-americanos chamam de The Unputdownable Book, a
pedra filosofal de todo autor, capaz de transformar em ouro puro todo o chumbo
dos linotipos em que o livro foi composto.
(Atenção – proibido falar em linotipos, porque O Leitor
De Hoje não sabe o que é linotipo, e se souber pode ter um AVC devido a um
excesso de informação nova em seus neurônios despreparados.)
Eu estava lendo um conto inglês de 1910 ou por aí e me
deparei com um personagem, um médico de maleta em punho indo atender um doente
em casa. Verdade que a casa era uma torre e o doente era uma pessoa “com berço”.
Nas minhas leituras mais antigas, era comum um médico,
numa noite de relâmpagos, vestir a roupa às pressas ao atender um chamado,
subir na primeira carruagem e rumar para um bairro distante, para atender um
paciente.
O leitor de hoje entende isso? Ele entende que venha um
SAMU, ou uma equipe de paramédicos, ou o helicóptero de um plano de saúde. Mas
o médico, o clínico, sair de cabeça descoberta, na intempérie, em plena
madrugada?
Quando eu era garoto e via filmes norte-americanos eu me
encantava com aquela porta de tela de arame que nas casas de lá são colocadas pelo
lado de fora das portas propriamente ditas. Não me lembro se já vi uma dessas
na vida real.
Nos romances da virada do século, da época de Sherlock
Holmes, de Arsène Lupin, de Edgar Wallace, era comum haver numa casa um
aparelho de telefone com dois receptores e um microfone, de modo que quando
alguém atendia era possível outra pessoa pegar o segundo auscultador e
acompanhar a conversa.
Eu nunca tinha visto um telefone assim, e acho que li
sobre isso antes mesmo de ter a honra de falar num telefone pela primeira vez,
e maldo que foi na casa de dona Alice do Ó, na rua Miguel Couto. Era um dos
dois ou três telefones que havia na rua inteira.
Vocabulário é uma coisa que precisa ser muito arrevezada
para me deter. Não tenho medo de palavras novas, pelo contrário, e ainda sei em
que livros vi pela primeira vez as palavras catalisador (Planeta Proibido),
impertérrito (Caçadas de Pedrinho), nenúfar (Histórias Extraordinárias), protonotário
(Dom Casmurro), charneca (O Cão dos Baskervilles), azinhaga (Os
Miseráveis)... Por outro lado, nunca consegui ler Huckleberry Finn no original, por causa da tentativa de grafia
fonética. Gosto do livro, mas encalho no linguajar inglês, que a tradução,
feliz ou infelizmente, não preservou.
Todo leitor tem direito a gostos e desgostos, e se a
alguém não agrada a pontuação em Saramago ou a despontuação em Beckett, é o
direito de cada um. Ninguém é obrigado a ler o que não lhe agrada, a não ser
que haja razões extra-literárias para isso. Por outro lado, acho que todo
leitor criterioso admite que perde algo quando não lê um livro, seja olivro bom ou ruim.
Quando encontramos anacronismos, costumes de outras
épocas que agora nos parecem estranhos ou ridículos, temos a obrigação de não
julgar aquilo simplesmente confrontando-o com os nossos hábitos ou os nossos
valores. É preciso fazer a triangulação “autor” e “ambiente” com o terceiro
vértice, o “leitor” no centro do seu
mundo.
Como não sei praticamente nada sobre a vida cotidiana no
Império Otomano, se um dia por acaso eu ler alguma obra ambientada nesse
período irei certamente me admirar com detalhes de alimentação, de batalhas, de
indumentária, de costumes familiares... Outros mundos, outras regras, outros
hábitos e acho que quem gosta de ler gosta muitas vezes por isso mesmo: para
vivenciar histórias inteligíveis num ambiente que é possível entender,
descrever e explicar para nós mesmos.
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