Já escrevi aqui no blog sobre os
Bertsolaris, os repentistas em verso do país basco, na Espanha. É uma tradição
que em alguns pontos se assemelha muito à do repente nordestino.
Os “bertsolaris improvisados” equivalem
ao nosso repente, com ou sem acompanhamento musical; os chamados “bertsos
escritos” equivalem ao nosso folheto de cordel. Apesar do idioma basco ser algo
quase alienígena, sua cultura oral se organiza em gêneros não muito diferente dos
nossos, como é sugerido por esta tabela:
Os bertsos, ou versos (no sentido
que usamos para “estrofe”), fazem parte da vida cotidiana e podem ser improvisados
a qualquer momento, se ocorrer a alguém um tema e um bom verso. Em áreas de
alta voltagem poética, como o Vale do Pajeú, no meio da uma conversa desabrocha
um mote que mal é anunciado e alguém já se dispõe a glosar. Faz parte da
cultura local. Isto significa que na platéia daqueles ginásios lotados há um
bom número de pessoas que sabem como se faz um verso, distinguem entre clichê e
novidade, e tanto sabem reconhecer um verso bom quanto sabem fazê-lo. Não se
trata de uma platéia de especialistas, mas de público e artistas estarem mergulhdos
na mesma cultura viva, e exigente.
Este clip aí abaixo é de um
festival de poesia improvisada num ginásio, para 17 mil pessoas. Sorteiam-se temas
para improvisos; um detalhe que eles enfatizam, é que o verso tem que ser feito
obrigatoriamente do ponto de vista de um personagem específico. “Na mesma
competição posso ser Obama, depois uma bicicleta velha, depois um pescador,
depois um jogador do Athletic de Bilbao, um amante abandonado, etc.” diz um
poeta.
É um verso improvisado a capella,
não há acompanhamento, e a melodia é uma coisa que me parece meio canto
gregoriano.
O formato mais frequente é o de
duas quadras justapostas, rimas geralmente XAXA-XBXB. Algumas vezes as duas
últimas linhas são repetidas, para encerrar.
Os versos têm geralmente oito sílabas.
Seus festivais têm algo dos nossos
congressos de violeiros, multidões na expectativa de ouvir o surgimento de
grandes versos. Em outros momentos, o que se tem é a tensão crispada de uma
mesa-de-glosas no sertão. Um poeta explica assim o melhor método para
improvisar (e eu concordo inteiramente): prepara-se primeiro uma chave-de-ouro
eficaz, um verso final com peso. E depois a pessoa vem ao começo e sai improvisando,
compondo o resto de modo a desembocar nesse final. A “queda do verso”, antes de
repetir o mote, como se diz entre violeiros.
Um exemplo de “tema” como eles
empregam: um cantor, Mendiluze, fará um órfão, que nunca teve problema com esta
condição e que quando adulto se tornou riquíssimo. Hoje, os criados trouxeram a
sua presença um homem (que vai ser interpretado pelo outro cantor, Egaña) que
alega ser seu irmão gêmeo. Os dois improvisam um diálogo em versos cada qual do
ponto de vista do seu personagem. Cada um diz duas quadras, alternadamente.
Pode ser uma dimensão enriquecedora
para bons improvisadores. De certo modo, uma certa herança teatral: é um repente
dialogado através de máscaras momentâneas. Não são apenas versos. Há um mínimo
de dramaturgia implícita, os versos criam uma cenazinha, um entremez relâmpago.
Em outras competições eles
sorteiam, como no Nordeste, um tema específico e um tipo-de-estrofe específico,
e o cantador deve improvisar dentro desses limites.
Aqui mais um clip, Antoni Egaña
cantando sozinho:
“Você é um jornalista, sentado à
mesa na redação para escrever seu último artigo”. O cantador dá alguns passos
até o microfone, concentra-se e canta suas estrofes quando as sente prontas na
mente. O festival parece mais com uma mesa-de-glosas contemporâneas do que com
os congressos de violeiros. A ausência da música instrumental é notável, porque
o ginásio inteiro prende a respiração enquanto o poeta pensa.
É como as mesas de glosas que tenho
visto em algumas cidades, principalmente na região de Tabira e de São José do
Egito (PE). Eu acho aquilo O Mais Silencioso Espetáculo da Terra, porque são
cinco ou seis pessoas sentadas numa mesa, pensando, e uma multidão olhando a
gota de suor na testa deles, e prendendo a respiração a cada instante a mais de
demora. E de repente, um verdadeiro grito de gol, com a linha final do verso.
Aqui, mesa de glosa em Tabira (PE):
Esses temas dos bertsolaris sugerindo
diálogos são uma certa teatralização do ato de improvisar, porque exigem
contexto, exigem personagem, exigem uma mentalidade especial dizendo aquelas
palavras. Parece inclusive com alguns tipos de exercícios de improviso, entre
atores, em que se sorteiam alguns elementos, como local, pessoas, algum
acontecimento, para que eles improvisem na situação descrita.
Tira um pouco do universo da
música, para a qual a cantoria tem perdido grandes improvisadores, que agora
gravam forró ou canção romântica ou repertório regional. As mesas-de-glosa estão
mais próximas dos bertsolaris do que
de um festival de violeiros. É o verso puro, cantado a capella, de um lado; e a
estrofe complexa onde é preciso encaixar a idéia produzida pelo tema dado
alguns segundos atrás.
Uma cantora famosa de bertsolaris,
Maialen Lujanbio:
Nas mesas de glosa, os improvisos
são feitos pela ordem. Um mote é sorteado, anunciado a todos, deixado em
destaque num telão ou num notebook ou num quatro de parede, bem visível para os
improvisadores e para o público. O primeiro poeta na ponta da mesa faz seu
verso, e somente depois dese se desincumbir será a vez do número 2 mostrar seu
verso, e assim por diante. No segundo sorteio, começa-se pelo poeta 2, para
proover rodízio de posições.
Outra mesa de glosa em Tabira (PE):
Há teorizações de todos os tipos
sobre as vantagens e desvantagens da mesa de glosas. Dois pontos me parecem
corretos: ser o último da fila tem a vantagem de dar mais tempo para pensar, para
estar com o verso pronto na ponta da língua. E tem a desvantagem de ver os
colegas que o antecederam usar as melhores possibilidades de rimas. Como todos
são obrigados a rimar com as palavras do mote, às vezes a palavra tem pouco
repertório de rimas, e repetir uma rima já usada por um colega é considerado um
pecado venial em muitos círculos poéticos.
Se o mote for, por exemplo, “abrindo a janela eu vejo / mil olhos no
firmamento”. Talvez minha primeira
idéia seja dizer alguma coisa sobre os astros e findar com a Lua que é feita de
queijo. Mas pela escassez de rimas é bem possível que antes de mim alguém
lembre da rima “queijo” e refaça o
mesmo raciocínio. Se ele recitar uma glosa assim, aí vou ter que começar tudo
de novo, e às pressas, para ter verso pronto quando minha vez chegar.
E às vezes o poeta sabe que o verso
que ele pensou é muito melhor do que aquele que o precedeu, e que se o verso
agradar, o público perdoará e esquecerá depressa a repetição.
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