quinta-feira, 19 de julho de 2018

4368) Conto com final, e conto sem final (19.7.2018)




Há mil maneiras de classificar o conto, como gênero literário. Miniconto e conto longo (ou noveleta); conto concreto  e conto abstrato; conto narrativo e conto descritivo; e assim por diante, mil emparelhamentos dois-a-dois.

Charles Kiefer tem um livro bastante útil, A poética do conto / De Poe a Borges, um passeio pelo gênero (Leya, 2011) onde ele propõe uma dessas divisões polarizadas. Para ele, existem, neste sentido específico, duas variantes do conto: a variante da modernidade ocidental, e a variante da modernidade oriental.

Na modernidade ocidental, pratica-se “o conto nascido com a industrialização, filho da locomotiva e da imprensa”: o conto propriamente narrativo, em busca de um efeito intenso e concentrado, teorizado principalmente por Edgar Allan Poe. O conto com começo, meio e principalmente fim – em geral um fim espantoso, ou inesperado, ou bruscamente revelador.

A modernidade oriental não se refere à China ou Japão, mas à influência do conto russo, aquele estilo cujo mestre foi Anton Tchecov. O conto que mostra um ambiente, narra o que sucede com algumas pessoas ali e se interrompe, ou se esvai, ou se prolonga até desaparecer. Nas palavras do autor:  o conto “que abre mão do final de efeito, em nome da criação de uma atmosfera. Nessa variante, se enquadrariam autores como Franz Kafka, Katherine Mansfield e Raymond Carver, por exemplo”.

Sempre ressalvando (é claro) que a maioria dos autores, principalmente os que publicaram muito, podem oscilar (por influências e motivações diversas, ao longo do tempo) entre uma modalidade e a outra.


Há um episódio curioso no Grande Sertão: Veredas em que Guimarães Rosa, à sua maneira solerte e pretextual, teoriza um pouco sobre essas duas maneiras de narrar.

Rosa (tenho falado isto com frequência) praticou todo tipo de conto: o narrativo, o descritivo, o curto, o longo, o realista, o fantástico, o trágico, o cômico. Se a gente fizesse antologias temáticas relativas a tudo isto ele apareceria com brilho em todas.

No Grande Sertão, Riobaldo conta a certa altura (pág. 81-82 da 2ª. edição) a história de dois jagunços amigos, o Davidão e o Faustino, do bando de Antonio Dó, que fazem um pacto.

(Já começa pelos nomes: Davidão é aumentativo de Davi, um Davi metido a Golias; Faustino é um diminutivo do Doutor Fausto, um pactário de renome.)

Com medo de morrer, Davidão trata com Faustino, mediante algum ritual, dar-lhe dez contos de réis para, chegada a hora dele, Davidão, quem morra seja ele, Faustino. O outro aceita, em parte pelos dez contos, em parte porque “no poder de feitiço do contrato ele muito não acreditava”.


Seguem-se alguns combates, nenhum dos dois morre. E Riobaldo comenta ter contado esse “causo” a alguém.

Pois, mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estória em livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia...

Portanto, o “rapaz da cidade grande, muito inteligente” era um defensor da “variante da modernidade ocidental” de um conto. Achava a idéia do pacto ótima – mas faltava nela o que? O desfecho incisivo, dramático, surpreendente. O “efeito” defendido e buscado por Edgar Poe.

Riobaldo, no entanto, comenta isso com finura oriental:

Apreciei demais essa continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros movimentos, sem os erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar.

Riobaldo elogia o desfecho imaginário proposto pelo rapaz urbano (visivelmente um tênue substituto do “senhor” a quem o Grande Sertão é narrado). Mas lamenta que a saída sugerida seja mais ficcional do que realista. O rapaz lhe pergunta qual tinha sido, mesmo, o fim da história dos dois.

E ele me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de realidade, de Davidão e Faustino. O fim? Quem sei. Soube somente só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem – deu baixa do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra, e outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino dar baixa também, e viesse morar perto dele, sempre. Mais deles, ignoro.

Ou seja: não houve desfecho dramático. O pacto ficou por isso mesmo. Na vida real não existe um clímax para o qual tudo se encaminha. Riobaldo tem consciência disso:

No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso...

As coisas acabam com menos formato, claro. Não há roteirista nem romancista “pelejando por exato”, regendo as peripécias do que acontece aqui, fora dos livros.

A literatura segue a “modernidade ocidental”; a vida de verdade rege-se pela “modernidade oriental”. Deve haver alguma lição filosófica a extrair disto, mas como estamos na vida-de-verdade, deixo a história morrer por aqui, sem sugerir um final para ela.



(ilustrações: Poty Lazzarotto)






2 comentários:

Manuel A. P. Sanches disse...

Há de todo modo uma licao filosófica.

lin de varga disse...

"De há muito, cansara-se o roceiro", você acredita, eu acho que era assim, começava meu primeiro conto publicado, em jornal que já nem é de existência, no Rio. Adoro os finais que têm uma surpresa, mas os contos de que chamo "de ambiente ", gosto também,
veja só... Hemingway .
Já os li, Maupassant Mansfield,Kafka, Tchekov, Dostoievski, Patrícia Highsmith ( amo tanto que a escrevi inteira, ) Woodrich, e quem mais. São mestres, e não sei se os devemos classificar. Lê-los é aventurança sem igual.
A gente até brinca com Rosa, mas nunca foi da intenção e da invenção dele, que parece escrever o mesmo com pintura de criança, se me faço entender.
Adoro as surpresas( veja Machado e"A carteira"),mas meus contos, desde sempre, as têm e passeiam também pela tentativa apurada de bem escrever com histórias cujos personagens são mostrados... Só se você os ler. Até "isabela" tem seu diário em Amazon/ kindle. São muitos contos, romance, só de ver.
Adorei este texto; vou acompanhar.