A arte de contar histórias é uma arte que se fixa como camadas sucessivas. Você tem que escutar dezenas, centenas de histórias (na infância, de preferência) até dominar mentalmente os mecanismos de “aconteceu isso, e por causa disso aconteceu aquilo”, ou “e agora, o que vai acontecer, isso ou aquilo?”, ou “enquanto isso está acontecendo aqui, aquilo está acontecendo noutro canto”...
É a sintaxe básica dos enredos, das narrativas onde
existem relação de causa e efeito entre os personagens.
Quando o autor sabe que pode contar com leitores habituados
a isso, ele pode comprimir um enredo como quem comprime uma mola – fazendo-o
ocupar um lugar menor mas mais carregado de energia.
Um bom conto é como um romance comprimido no menor espaço
possível. A gente tem a sensação de que se encostar a pontinha do dedo na
página o conto dá um salto no ar e se transforma num livro de 200 páginas.
E numa fase muuuito posterior à infância o leitor chega
àquele ponto em que basta uma frase inicial estalando o dedo para que ele
comece a fantasiar, cheio de expectativa.
Vi um texto de Dwyer Murphy, no saite Electric
Literature, comentando o trailer do filme The
Big Sleep de Howard Hawks (1946). No trailer, Humphrey Bogart, vestido como
Philip Marlowe, entra numa biblioteca, pede ajuda à bibliotecária, e ela lhe
oferece o livro The Big Sleep de
Raymond Chandler. Ele abre, folheia, e começa a ler:
Às vezes me ponho a imaginar que estranho destino me conduziu, numa
noite de tempestade, àquela casa que se erguia sozinha no meio das sombras...
Essa frase não está nem no livro de Chandler nem no
filme. Ela apenas sugere o sangrento confronto final, que de fato é numa casa
afastada, na zona rural, numa noite de chuva. Deve ter sido escrita pelo
roteirista do trailer. (Que aliás nunca é o roteirista do filme).
A frase não tem nenhum grande mérito literário, mas é uma
espécie de invocação mágica para leitores de histórias de mistério. É uma frase
que nos joga no território arquetípico da Narrativa Em Redor Da Fogueira (ou da
lareira do clube londrino, etc. etc.).
“Às vezes me ponho
a imaginar que estranho destino me conduziu...”:
É uma história na primeira pessoa; aconteceu à pessoa que
a conta. Sabemos logo que pelo menos o narrador “escapou para contar a
história”.
“...que estranho
destino...”:
Forças invisíveis e poderosas moldaram a história. O
herói pôde no máximo antevê-las e adaptar-se.
“...numa noite de
tempestade...”:
A noite escura da alma, a floresta selvagem onde nos
perdemos à noite, no meio do caminho desta vida. A Natureza convulsa é um dos
símbolos mais antigos de um Inconsciente indócil.
“...àquela casa que
se erguia sozinha...”:
A casa isolada, sem ninguém por perto; símbolo do espaço
fechado, a ilha cercada de vazio por todos os lados, “onde ninguém ouvirá você
gritar”.
“...no meio das
sombras...”:
No meio da nossa incapacidade de pressentir o que vai
acontecer, de corresponder ao que está acontecendo, de entender totalmente o
que aconteceu.
O trailer pode ser visto aqui:
Se me dou o trabalho de fazer essa análise toda é porque
essa frase inicial me emociona atavicamente, e dificilmente deixarei de ler (ou
pelo menos tentar) um conto ou livro que comece assim.
É uma espécie de “Era
uma vez...” para adultos que apreciam o romance gótico ou o conto
fantástico.
E me trouxe à memória uma homenagem feita por Osman Lins
em A Rainha dos Cárceres da Grécia. É
um romance sobre a literatura: após a morte de uma escritora, seu companheiro
lê e comenta com o leitor trechos do romance que ela deixou inacabado.
Refletindo sobre histórias narradas numa roda de amigos,
ele diz:
(...) O núcleo da situação – o conto, o narrador, o ouvinte e o abrigo
– permanece:
Havia sobre a mesa uma pequena lâmpada com abajur. Guarneciam a lareira
um itinerário, um almanaque, o tinteiro com uma pena e meio bastão de lacre.
Ele pedira dois conhaques duplos com o café e estava encolhido na poltrona.
Envolvia-nos a esquisita sensação de intimidade que proporcionam as salas
repousantes e silenciosas do Hotel Plaza.
– Serei importuno se lhes contar o caso?
Sucedeu com um amigo do meu tio e, desde então, oitenta anos se passaram.
A citação é imaginária, unindo fragmentos de Dickens e de Maugham. Que
romancista, entretanto, não reconhece aí o ofício de contar, a união com o
leitor e a ânsia de ser ouvido longe do tumulto do mundo?
(págs. 80-81)
O romance contemporâneo que se pretende objetivo, seco,
realista, tem incontáveis virtudes, mas há uma faixa muito grande de leitores
que, como eu, gostam de ler uma história sabendo que é história, uma história
que já se assume como coisa contada desde as primeiras palavras.
Um comentário:
Bacana!
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