segunda-feira, 19 de setembro de 2016

4161) "Mickey One" (19.9.2016)



Mickey One de Arthur Penn (1965) é um desses filmes obscuros que só servem de referência para mim, porque ninguém nunca viu. Tirando minha turma do Cineclube de Campina Grande, conheço poucas pessoas que viram o filme. Lembro que Jean-Claude Bernardet foi um dos poucos que disseram lembrar e gostar dele. Citei esse filme num conto da Espinha dorsal da memória.  

A crítica da época comparou a Kafka esta história de um artista de stand-up comedy, que cai em desgraça junto à Máfia e começa a fugir de tudo e de todos, porque não sabe exatamente quem está tentando matá-lo. No auge do sucesso nas boates de Detroit, Mickey (Warren Beatty) foge dos palcos, viaja de carona, desaba noutra cidade, trabalha como servente, mora numa pensão sórdida.

Sua transformação parece a daquele personagem de Philip K. Dick que num dia é o apresentador de TV mais famoso do país e no outro acorda atordoado numa pensão barata, num mundo onde não tem documentos e onde sua existência é negada em todos os registros.

O começo dos anos 1960 jogou uma curiosa saraivada de influências no cinema norte-americano.

Vi num programa de TV a cabo que a parceria entre Warren Beatty e o diretor Arthur Penn surgiu (estou contando de memória, pode não ser precisamente isto) porque Beatty, sempre antenado, tinha visto os filmes policiais existencialistas de Louis Malle (Ascensor para o Cadafalso, 1958), Jean-Luc Godard (Acossado, 1959), François Truffaut (Atirem no pianista, 1960) e outros. Achara aquilo o máximo e queria fazer um equivalente.

Mickey One, a primeira tentativa, não produziu muito impacto mas resultou num filme plasticamente belo e com uma narrativa bem pessoal. Eles conseguiram contar, por exemplo, com o fotógrafo Ghislain Cloquet, que faz um belo trabalho em preto e branco. (Cloquet fotografou numerosos trabalhos de Alain Resnais e Robert Bresson).

A intenção parece ter sido a de capturar um pouco desses filmes, onde sobre uma ambientação de policial “B” norte-americano alguém projetava o absurdismo do ”estrangeiro” de Camus, dos destinos trágicos previsíveis de antemão.

Policial e jazz norte-americano. Angústia existencial e notas de rodapé francesas.

Mickey One, visualmente, tem sequências extremamente bem editadas em termos de movimento e descrição dramática. Várias cenas meio stanislawskianas que parecem bate-bocas meio escritos e meio improvisados entre os atores.

Era uma tendência teatralizante da época, e Beatty, já um galã em ascensão, queria visivelmente seguir na trilha de James Dean, Marlon Brando e Paul Newman: o herói sedutor mas torturado por uma ânsia inexplicável que as personagens femininas, obedecendo aos roteiristas, achavam charmoso.

Vi o filme em 1967 em Campina Grande, e votei nele como melhor filme do ano. Vi alguma repercussão nos jornais do Nordeste, mas nada que deixasse marcas mais fundas.

E como diria o poeta João Barafunda, tão recitado por meu pai: “Todos depressa, desde aquele instante / esqueceram-se dela. Menos eu.”  Quando dois anos depois Beatty e Penn jogaram sua segunda cartada, com Bonnie e Clyde - Uma rajada de balas (1967), todo mundo se esqueceu de Mickey One. Menos eu.

Revi o filme agora e parece Jim Jarmusch, roman noir em P&B, com boas doses de Louis Malle.  Na época falávamos (porque era isso que os críticos profissionais falavam) da influência de Kafka e de Orson Welles, com O Processo (1962), que é certamente outro referencial de Penn. E de Metropolis – em alguma sequência de facho de luz na escuridão ou de balé visual de estruturas mecânicas.

Na época acho que as referências da gente puxavam para esse lado gótico, expressionista, sei lá o quê. Vivíamos escarafunchando a história do cinemão antigo, e os parâmetros ficavam sendo aqueles. Mas hoje vejo o quanto esse policial existencialista norte-americano é um esforço consciente para ser meio francês.

O filme tem cenas noturnas meio incoerentes e delirantes, sem som ambiente, apenas com um solo de jazz; é um detalhe que Penn pega do Ascensor de Malle, e onde o francês usava Miles Davis ele usa Stan Getz.

Mickey tem várias cenas em que ele fala e fala para um interlocutor que não emite uma sílaba. É a maldição do standup.  A maldição de Riobaldo e do sobrinho do Iauaretê: alguém que não consegue parar de falar, alguém que não consegue parar de dizer em voz alta algo que ainda não sabe o que vai ser.

Alguém que aceita com um certo susto e uma certa humildade servir de conduto ao jorro de uma mensagem falada. E o jorro passa através deles, e não adianta perguntar se compreendem o que estão dizendo, mas é bem possível que um ou outro saiba.

Mickey fala, pergunta, responde-se, questiona-se. Troca de tom e de personagem quando vê que não está funcionando. É, como Beatty provavelmente é, um ator 24-horas-7-dias.

O melhor filme daquele ano? Olhe, filmes mais galardoados do que ele já envelheceram pior aos meus olhos.

Arthur Penn é admiradíssimo por pessoas que não têm a menor idéia de sua existência. Talvez fiquem surpresas em saber que são de um mesmo cineasta filmes tão dissímiles e tão assistíveis quanto Bonnie & Clyde (com Beatty e Faye Dunaway), O milagre de Anne Sullivan (com Anne Bancroft e Patty Duke), Pequeno Grande Homem (com Dustin Hoffmann), Alice`s Restaurant (com Arlo Guthrie), Night Moves (com Gene Hackman), Caçada Humana (com Marlon Brando). 






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