Mickey One de
Arthur Penn (1965) é um desses filmes obscuros que só servem de referência para
mim, porque ninguém nunca viu. Tirando minha turma do Cineclube de Campina
Grande, conheço poucas pessoas que viram o filme. Lembro que Jean-Claude
Bernardet foi um dos poucos que disseram lembrar e gostar dele. Citei esse
filme num conto da Espinha dorsal da
memória.
A crítica da época comparou a Kafka esta história de um
artista de stand-up comedy, que cai em
desgraça junto à Máfia e começa a fugir de tudo e de todos, porque não sabe
exatamente quem está tentando matá-lo. No auge do sucesso nas boates de Detroit,
Mickey (Warren Beatty) foge dos palcos, viaja de carona, desaba noutra cidade, trabalha
como servente, mora numa pensão sórdida.
Sua transformação parece a daquele personagem de Philip
K. Dick que num dia é o apresentador de TV mais famoso do país e no outro
acorda atordoado numa pensão barata, num mundo onde não tem documentos e onde
sua existência é negada em todos os registros.
O começo dos anos 1960 jogou uma curiosa saraivada de
influências no cinema norte-americano.
Vi num programa de TV a cabo que a parceria entre Warren
Beatty e o diretor Arthur Penn surgiu (estou contando de memória, pode não ser precisamente
isto) porque Beatty, sempre antenado, tinha visto os filmes policiais existencialistas
de Louis Malle (Ascensor para o Cadafalso,
1958), Jean-Luc Godard (Acossado,
1959), François Truffaut (Atirem no pianista,
1960) e outros. Achara aquilo o máximo e queria fazer um equivalente.
Mickey One, a
primeira tentativa, não produziu muito impacto mas resultou num filme
plasticamente belo e com uma narrativa bem pessoal. Eles conseguiram contar,
por exemplo, com o fotógrafo Ghislain Cloquet, que faz um belo trabalho em
preto e branco. (Cloquet fotografou numerosos trabalhos de Alain Resnais e
Robert Bresson).
A intenção parece ter sido a de capturar um pouco desses
filmes, onde sobre uma ambientação de policial “B” norte-americano alguém
projetava o absurdismo do ”estrangeiro” de Camus, dos destinos trágicos
previsíveis de antemão.
Policial e jazz norte-americano. Angústia existencial e
notas de rodapé francesas.
Mickey One, visualmente,
tem sequências extremamente bem editadas em termos de movimento e descrição
dramática. Várias cenas meio stanislawskianas que parecem bate-bocas meio
escritos e meio improvisados entre os atores.
Era uma tendência teatralizante da época, e Beatty, já um
galã em ascensão, queria visivelmente seguir na trilha de James Dean, Marlon
Brando e Paul Newman: o herói sedutor mas torturado por uma ânsia inexplicável
que as personagens femininas, obedecendo aos roteiristas, achavam charmoso.
Vi o filme em 1967 em Campina Grande, e votei nele como
melhor filme do ano. Vi alguma repercussão nos jornais do Nordeste, mas nada
que deixasse marcas mais fundas.
E como diria o poeta João Barafunda, tão recitado por meu
pai: “Todos depressa, desde aquele instante / esqueceram-se dela. Menos eu.” Quando dois anos depois Beatty e Penn jogaram
sua segunda cartada, com Bonnie e Clyde -
Uma rajada de balas (1967), todo mundo se esqueceu de Mickey One. Menos eu.
Revi o filme agora e parece Jim Jarmusch, roman noir em P&B, com boas doses de
Louis Malle. Na época falávamos (porque
era isso que os críticos profissionais falavam) da influência de Kafka e de
Orson Welles, com O Processo (1962),
que é certamente outro referencial de Penn. E de Metropolis – em alguma sequência de facho de luz na escuridão ou de
balé visual de estruturas mecânicas.
Na época acho que as referências da gente puxavam para
esse lado gótico, expressionista, sei lá o quê. Vivíamos escarafunchando a
história do cinemão antigo, e os parâmetros ficavam sendo aqueles. Mas hoje
vejo o quanto esse policial existencialista norte-americano é um esforço
consciente para ser meio francês.
O filme tem cenas noturnas meio incoerentes e delirantes,
sem som ambiente, apenas com um solo de jazz; é um detalhe que Penn pega do Ascensor de Malle, e onde o francês
usava Miles Davis ele usa Stan Getz.
Mickey tem várias cenas em que ele fala e fala para um
interlocutor que não emite uma sílaba. É a maldição do standup. A maldição de
Riobaldo e do sobrinho do Iauaretê: alguém que não consegue parar de falar,
alguém que não consegue parar de dizer em voz alta algo que ainda não sabe o
que vai ser.
Alguém que aceita com um certo susto e uma certa humildade
servir de conduto ao jorro de uma mensagem falada. E o jorro passa através
deles, e não adianta perguntar se compreendem o que estão dizendo, mas é bem
possível que um ou outro saiba.
Mickey fala, pergunta, responde-se, questiona-se. Troca de
tom e de personagem quando vê que não está funcionando. É, como Beatty
provavelmente é, um ator 24-horas-7-dias.
O melhor filme daquele ano? Olhe, filmes mais galardoados
do que ele já envelheceram pior aos meus olhos.
Arthur Penn é admiradíssimo por pessoas que não têm a
menor idéia de sua existência. Talvez fiquem surpresas em saber que são de um
mesmo cineasta filmes tão dissímiles e tão assistíveis quanto Bonnie & Clyde (com Beatty e Faye
Dunaway), O milagre de Anne Sullivan (com
Anne Bancroft e Patty Duke), Pequeno
Grande Homem (com Dustin Hoffmann), Alice`s
Restaurant (com Arlo Guthrie), Night
Moves (com Gene Hackman), Caçada
Humana (com Marlon Brando).
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