quinta-feira, 6 de março de 2014

3439) "Minha Formação" (6.3.2014)



Uma autobiografia é um livro onde um cara demonstra que quem tinha razão era ele; mas nem sempre. O clássico Minha Formação (1900), de Joaquim Nabuco, tem esse lado em seu terço final, onde o autor trata do movimento abolicionista, mas como o grosso da sua munição tinha sido usado no maciço O Abolicionismo (1883), estas memórias são, curiosamente, não as de um político triunfante, mas as de um escritor frustrado. A primeira metade do livro passa rapidamente pela infância e adolescência e decola quando Nabuco parte em 1873 para a Europa, cheio de aspirações políticas e literárias.

Seus capítulos sobre a França, a Inglaterra e os EUA são excelentes, inclusive nas comparações que faz entre estes últimos.  Hoje, um século e meio depois, elas se mantêm de pé, indicando que ele soube captar em poucas páginas o espírito de cada povo (ou traços essenciais desse espírito). Sobre o racismo e a abolição, falarei outro dia; o que me interessa aqui é observar o quanto esse escritor de cultura vasta e estilo admirável foi subtraído à literatura, por um lado pela premência dos compromissos políticos (herdados em grande parte da tradição paterna) e por outro (aqui é especulação minha) pela falta do talento fabulatório, ou seja, pela falta de jeito para inventar histórias.  

Nabuco conta seu nervosismo ao visitar em 1874, em Paris, seu ídolo literário, Ernest Renan (1823-1892), que o recebeu com carinho, elogiou-lhe os versos (“oui, vous êtes vraiment poète”) e lhe deu conselhos; mas esse incentivo foi contrabalançado por um encontro posterior com Edmond Scherer (1815-1889), que não emitiu nenhuma opinião direta sobre os versos, mas manteve um “silêncio frio, impenetrável, entretanto polido, atencioso, simpático”. Nabuco recorda essas ansiedades de juventude com altivez e compreensão. Sua autocrítica parece mais serena e mais sincera do que, por exemplo, a insistente modéstia de Gilberto Freyre em sua conferência proferida na UFPB em 1965, Como e porque sou escritor

São dois grandes escritores, na verdade; mas ser escritor não é o mesmo que ser ficcionista, e muitos não o percebem. Os dois perceberam, ou foram obrigados a isso pelas suas respectivas circunstâncias. Uns têm as histórias, mas falta-lhes o estilo; outros desenvolvem o mais exuberante e maleável dos estilos, mas dependem de que o mundo real lhes forneça as histórias.  Pode-se dizer que a literatura brasileira tende a ser uma estufa de criação de estilos, pois a formação dos seus grandes autores passa necessariamente pelos grandes do idioma.  A invenção de enredos, entre nós, é uma arte muito mais recente, e as duas aos poucos irão se harmonizando.


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