quinta-feira, 14 de março de 2013

3133) Drummond: "Música" (14.3.2013)




Carlos Drummond de Andrade dedicou a seu amigo Pedro Nava este poemazinho de Alguma Poesia, seu livro de estréia em 1930.  É um poema de época, flash de um tempo em que as casas tinham um piano na sala, para que as moçoilas exibissem seus dotes às visitas, após a ceia. Fazia parte nos namoros daquele tempo esse momento ao piano, em que sensibilidade, refinamento, traquejo social e outras qualidades eram aferidas ao som de um Noturno ou de uma Polonaise. Machado, no “Memorial de Aires”, tem belas páginas em que o  Conselheiro Aires observa o namoro de dois jovens durante essas sessões pianísticas.

O poema de Drummond, “Música”, diz: “Uma coisa triste no fundo da sala. / Me disseram que era Chopin. / A mulher de braços redondos que nem coxas / martelava na dentadura dura / sob o lustre complacente.”  O traço mais notável aí é uma certa rudeza nos símiles – os braços parecem coxas, o teclado é comparado a uma dentadura. Isto já condiz com a inapetência do narrador para com essa música que desde o início ele considera “uma coisa triste”, sem sequer chamar de música.

E ele prossegue: “Eu considerei as contas que preciso pagar, / os passos que era preciso dar, / as dificuldades... / Enquadrei o Chopin na minha tristeza / e na dentadura amarela e preta / meus cuidados voaram como borboletas.”  Na obra de Drummond, a criação artística redime tudo, recupera tudo. O Chopin deste poeminha é primo legítimo das canções que ele enumera em “A música barata”: “Paloma, Violetera, Feuilles Mortes, / Saudades de Matão e de mais quem? / A música barata me visita / e me conduz / para um pobre nirvana à minha imagem”.  Como acontece com o protagonista de “A Náusea” de Sartre, que em plena crise de bad-trip existencialista deixa-se resgatar de volta para o mundo e a vida através de um blues cantado por uma negra; “Some of these days / you’ll miss me honey...”.

No começo de século em que viveram esses escritores a música barata surgia como uma possibilidade de enlevo, de êxtase acessível. Era a música capaz de arrancá-los da tristeza e da banalidade do cotidiano. Tempo em que a música era uma salvação caída do céu, e não esse martelar constante e onipresente do mundo de hoje. Pra onde a gente se vire, há uma superfície eletrônica produzindo música, e mesmo que toda essa música fosse a música de que gostamos, isto não seria uma versão requintada do inferno? Estar preso numa gaiola com um milhão de pássaros cantores? No tempo de Drummond, tanto o Chopin erudito quanto as valsinhas kitsch dos salões eram capazes de fazer as preocupações humanas partirem todas numa revoada de borboletas.

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