domingo, 11 de abril de 2010
1900) “Cabeças Cortadas” (11.4.2009)
Nos 70 anos de nascimento de Glauber, surge outra raridade na TV a cabo: Cabeças Cortadas (1970), seu filme espanhol, que eu vira apenas uma vez, há 30 anos, no saudoso Festival de Verão de Areia, quando detestei o filme. Revendo-o agora, com muito menos expectativa, acabei gostando mais. A única lembrança visual que eu guardava era a do longuíssimo plano de abertura, em que o ditador Diaz (Francisco Rabal), sentado a uma mesa num palácio, tendo na parede ao fundo um belíssimo mural, fala em dois telefones ao mesmo tempo. Faz uma ligação de amor e outra de negócios, e logo está trocando os fones, misturando as falas.
Diaz é um personagem que já esteve em moda na narrativa latino-americana, o Ditador Delirante. Um arqui-vilão, mas ao mesmo tempo uma “sombra”, um Monstro-do-Id dos próprios autores. A figura satânica mas magnífica que concentra em si toda a Vontade de Poder e os abismos que esse Poder desencadeia quando exercido sem ligar para consequências.
Há algumas cenas buñuelescas, resultado da memória afetiva de Glauber sendo ativada pela língua e paisagens da Espanha. Um cego paralítico sendo carregado por uma multidão, e sendo curado pelo Pastor (Michel Clementi) que passa saliva em seus olhos. Os pés do ditador Diaz sendo lavados numa bacia, em cerimônia pública. Diaz e uma mulher rolando abraçados na lama (L’Âge d’Or). Diaz na praia empunhando um relógio, empunhando um ovo. Ressonâncias do cinema de Buñuel e do surrealismo em geral, nunca antes tão explícitos nos filmes de Glauber.
Depois de sua trilogia dialética (Deus e o Diabo, Terra em Transe, Dragão da Maldade), Glauber, exilado, mergulhou no inconsciente coletivo do Terceiro Mundo, produzindo um cinema de alegorias desvairadas, pesadelos políticos em forma de teatro de guerrilha, encenações barrocas que colidiam de frente com a retórica marxista dos diálogos. Filmes politicamente esquemáticos (cada personagem representava um “tipo”, uma categoria de agente político ou econômico), mas esse esquematismo e as possíveis lições políticas que poderiam resultar dele eram erodidos pelo excesso dionisíaco da encenação, o exagero gestual e vocal de atores que ele pressionava até quase um ponto de ruptura.
Em Cabeças Cortadas (1970), O Leão de 7 Cabeças (1971), indo até A Idade da Terra (1980), o cinema de Glauber se transformou em algo monstruoso, como “A Coisa” do filme de John Carpenter, um ser capaz de assimilar e reproduzir tudo com que entrava em contato. Estes filmes, no entanto, eram finalizados e exibidos ainda num estágio de semi-assimilação, como uma peça que estréia sem ter ensaiado até o ponto certo. O que se vê neles é uma colagem de idéias sem maturação, lances geniais e pirações descartáveis, homenagens explícitas, citações veladas, provocações impudentes. A peleja de um talento premido pela urgência contra um sistema repressor que tem todo o tempo do mundo. A peleja da pressão contra a panela.
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