quarta-feira, 31 de março de 2010
1853) Os bagunceiros e os arrumadinhos (15.2.2008)
Todo mundo ficou triste quando Edmilson e Flavinha se separaram. Eram um casal alegre, sempre de alto astral, tinham dezenas de amigos em comum, e pareciam se dar tão bem. Um ano de namoro os levou ao sétimo céu; seis meses de casamento os trouxeram sem paraquedas ao chão pedregoso da desilusão.
E o pior é que se separaram jurando amor eterno um pelo outro. O que é ainda mais trágico do que quando os separantes desabafam coisa como “ainda bem que me livrei daquela mala sem alça” ou “felizmente percebi a roubada em que estava me metendo”. Não, nada disso. Edmilson, depois do décimo chope, confessava: “Nunca mais vou amar ninguém, só quero ela”. Flavinha pendurava-se ao telefone com as amigas: “Se ao menos ele cedesse um pouco! Um pouquinho só! Eu seria a mulher mais feliz do mundo!”.
Aos olhos dos amigos, os dois se sincronizavam sem esforço, como patinadores escandinavos deslizando no gelo. Todo o problema (vim a apurar) começava em casa. Fechada a porta e acesa a luz, começava o desespero, porque Edmilson era a ordem e a limpeza em pessoa, enquanto Flavinha tinha sido criada por pais meio ripongas e era aquariana (explicava: “nós não ligamos para os aspectos superficiais da realidade”). Do tipo que deixa um prato sujo em cima da TV durante uma semana, calcinhas jogadas pela casa, livros abertos onde quer que a leitura fosse interrompida. Seu conceito de arrumar a casa consistia em apanhar os objetos no chão (contas a pagar, casca de banana, saco plástico vazio) e colocá-los sobre o móvel mais próximo.
Edmilson não podia ver uma revista oblíqua em cima da mesa de centro, tinha que colocá-la em paralelo com as bordas. Beber água incluía o ato de lavar o copo, enxugá-lo e colocá-lo de volta no armário. Sua mesa de cabeceira tinha sempre a caixa de óculos para ver TV, o despertador digital, um vidro de pílulas e uma foto emoldurada de Flavinha. A mesa de cabeceira dela tinha revistas amassadas, frutas roídas pela metade, calcinhas, invólucros rasgados de preservativos, meias, e uma foto emoldurada de um ex-namorado, que ela planejava trocar um dia pela de Edmilson, porque adorava aquela moldura.
Descobriram uma das mais duras verdades da vida: amor não basta, e amor havia. Edmilson não podia vê-la sem sentir na garganta um nó de ternura. Flavinha via nele um arquétipo paternal, um ursinho de pelúcia e um garanhão que a deixava de pernas bambas. O problema é que cada um tinha a sensação de viver numa casa totalmente dominada pelo outro. Ele considerava aquele apartamento um pesadelo rabelaisiano, uma proliferação barroca e insensata de justaposições surrealistas, um pesadelo de Ionesco dirigido pelo Monty Python. Para Flavinha, ele representava a ditadura do Número, da Medida, da Ordem, da Disciplina, um delírio de Kafka administrado por economistas de Chicago e designers da Bauhaus.
Era o amor entre uma ave e um peixe, em que ir viver no mundo do outro significa a morte.
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