domingo, 21 de fevereiro de 2010

1681) “Encarnação do Demônio” (1.8.2008)



Fui à pré-estréia carioca deste novo filme de José Mojica Marins, o retorno triunfal de Zé do Caixão, que nos anos 1960 foi o grande personagem do nosso filme B de terror com filmes como À Meia Noite Levarei Sua Alma (1963), Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver (1967), O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1967) e outros. Perseguido pela censura e pela igreja, Zé do Caixão dividia a crítica. Uns o achavam violento, tosco, de mau gosto. Outros (como Glauber Rocha) o consideravam um talento bruto, bem brasileiro, e com aquilo que Borges chamava de “fulgor satânico”.

Mojica fez inúmeros filmes menores na Boca do Lixo paulistana, inclusive filmes pornô. Participou como ator de filmes alheios (como no extraordinário, e esquecido, O Profeta da Fome de Maurice Capovilla) e agora retorna de forma triunfal. O projeto de Encarnação do Demônio existia há mais de quarenta anos, antes mesmo do nascimento de seus atuais produtores, Paulo Sacramento e Fabiano Gullane, como eles lembraram antes da sessão.

O filme de Mojica tem de tudo: câmaras de tortura, terreiros de macumba, chacina policial, rituais violentos que nada devem a Hannibal Lecter ou ao Massacre da Serra Elétrica. Neste sentido, a evolução técnica e a produção cara (1,8 milhão de reais, quando o próprio Mojica confessa que teria feito o filme com 120 mil) deixam o filme mais parecido com os filmes de terror norte-americanos de hoje e menos parecidos com os filmes toscos, desajeitados, mas visceralmente pessoais, que Mojica fazia. Em 1970, não havia ninguém no Brasil cujo cinema parecesse com o dele. Hoje, continua a não haver, mas seu filme corre paralelo ao cinema de terror “gory” que enche hoje as nossas telas.

O lado positivo dessa mudança é que os antigos filmes de Zé do Caixão eram uma espécie de viagem pessoal, delírio particular do cineasta. Trechos deles aparecem em “Encarnação do Demônio”: em preto-e-branco, mostrando um Mojica jovem, magrinho, de barba preta. Era o tempo em que Zé do Caixão sentava à janela, vendo passar a procissão da Sexta-Feira Santa e devorando um blasfemo pedaço de galinha. Seu filme atual, contudo, está visceralmente misturado à violência e ao terror de São Paulo: crianças que cheiram cola, policiais que fuzilam favelados, garotas góticas que freqüentam cemitérios. Os filmes de Mojica nos anos 1960 eram contemporâneos dos porões da tortura na ditadura militar; o filme de hoje tem o seu próprio porão de tortura, no meio de uma favela miserável onde Zé do Caixão vive seu pesadelo de super-homem maligno.

As cenas de violência são para espectadores de estômago forte. Outras cenas insólitas mostram o talento selvagem do diretor, como a cena da mulher enforcada num galho de árvore que abre os olhos, volta à vida, corta a corda com uma faca e cai de pé, para perseguir Zé do Caixão. Uma imagem de pesadelo, mais forte que as cenas de tortura, e típica da imaginação “uncanny” de Mojica.

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