terça-feira, 12 de janeiro de 2010

1509) Decifrando palavras (13.1.2008)




Existem palavras cujo significado não sabemos mas que nos impõem respeito pelo seu tamanho, pela sua sonoridade. Autores como Augusto dos Anjos ou Guimarães Rosa jogam em nosso colo, a cada linha, um polissílabo indecifrável, e nem por isso deixam de ser lidos. 

É claro que outros autores de vocabulário igualmente rebuscado caíram num injusto esquecimento, como é o caso de Coelho Neto ou Emílio de Menezes, mas em todo caso a fama de uns e a obscuridade dos outros deve ser atribuída a um conjunto de fatores que vai além do simples vocabulário.

Augusto dos Anjos dizia muitas vezes coisas incompreensíveis, mas com uma tal precisão métrica e uma tal riqueza sonora no uso da rima que aquelas palavras pareciam não só inevitáveis, como obrigatórias. 

O fato de não sabermos o que é “o cosmopolitismo das moneras” perdia importância diante do impacto melódico com que ele surge no interior da estrofe. 

Há um divertido poema de Pablo Neruda, “Orégano”, em que ele descobre essa palavra e se deixa fascinar por ela. Sai pelas ruas bradando: “Orégano! Orégano!”. À sua passagem as pessoas se espantam, e os leões se ajoelham aos seus pés. Toda palavra nova que descobrimos é uma palavra mágica, capaz de gerar prodígios.

Uma palavra vale como signo total da coisa que representa. No seu célebre poema “Liberdade”, Paul Éluard dizia: 

E pelo poder de uma palavra 
eu recomeço minha vida 
eu nasci para te conhecer 
para te nomear: 
Liberdade. 

Pelo poder de cada palavra existente podemos evocar seu sentido direto, seus significados secundários, suas nuances, suas associações de idéias... Mas acima de tudo podemos evocar significados impossíveis ou improváveis que brotam da sonoridade, da rima, da semelhança dessa palavra com outra. 

“Orégano” pode a uma pessoa lembrar “origem”, a outra pode lembrar “ébano”, a uma terceira pode lembrar “onagro” (jumento selvagem, ou uma espécie de catapulta militar antiga). 

Guimarães Rosa, em “São Marcos”, tem um longo trecho sobre a magia sonora das palavras, que segundo ele, numa expressão que se tornou famosa, “têm canto e plumagem”, ou seja, se impõem pela sua força melódica e pela vividez de sua sugestão visual.

Augusto dizia que a idéia “vem do encéfalo absconso que a constringe”. Sabemos que encéfalo quer dizer cérebro (todo mundo já ouviu falar em “eletro-encefalograma”, etc.). “Constringe” é uma mistura de “constrange” e “restringe”, mas não deve ser invenção de Augusto, e sim uma variante híbrida dos dois termos. O que diabo será “absconso”? Pelo contexto significa algo remoto, misterioso. Seu formato sugere que é formada de “ab + sconso”. “Sconso” ou “esconso” deve ser variante de “escondido” (assim como “canso” é variante de “cansado”). 

Em alguns segundos, numa leitura lenta, sem pressa, o encéfalo processa essas possibilidades, o texto entremostra seus segredos, apenas o bastante para que continuemos a explorá-lo.






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