quinta-feira, 6 de agosto de 2009

1182) A arte e os monstros (27.12.2006)




(Fred Folsom, Danse Macabre)

Existe uma afinidade indefinível entre a música clássica e o filme de terror. Do Dr. Jekyll ao Abominável Dr. Phibes, a junção de monstros e música orquestral européia parece cumprir várias funções que se superpõem e se reforçam mutuamente. 

Por um lado, grande parte da música orquestral tem por sua própria natureza musical um clima “assombratício e profético” como diz Ariano Suassuna. Tenho um CD-coletânea da saudosa série de TV Tales of the Crypt, onde encontramos algumas das músicas mais impressionantes do repertório clássico. 

A “Tocata e Fuga em Ré Menor” de Bach é uma das músicas mais portentosas para se iniciar um espetáculo dando um “cala-a-boca” na audiência. Há faixas como a “Dança Macabra” de Saint-Saëns que não me parece muito macabra, ao contrário, ou como “In the Hall of the Mountain King” de Grieg, que ficou famosa pelo seu uso como tema do assassino em M, o Vampiro de Dusseldorf

Mas quem há de negar o poder terrorífico da “Noite na Montanha Calva” de Mussorgsky ou da “Valsa de Mefisto” de Liszt?

Mas isto é apenas um lado: a música assustadora. A simbiose mais profunda entre terror e música clássica é que temos aqui dois opostos: a emoção mais primal e instintiva, e a criação emotiva mais sofisticada. 

A Música Sinfônica e a Física Teórica já foram apontadas como as grandes contribuições intelectuais da Europa ao mundo nos últimos séculos. No conto de Borges “Deutsches Requiem” o narrador, um oficial nazista, diz ser admirador devoto de Brahms e de Shakespeare, e afirma: “Quem se detiver, maravilhado, trêmulo de ternura e gratidão, ante qualquer parte da obra desses homens felizes, saiba que também eu me detive aí, eu, o abominável”

É como se a grandeza (melhor dizendo, a contraditória complexidade) da obra de certos artistas a tornasse acessível mesmo a quem habitasse um abismo de trevas.

Há um episódio em A Metamorfose de Kafka em que Gregor Samsa, já transformado num enorme inseto, ouve sua irmã tocando violino noutro aposento, e aquela música tão bela o comove. O texto diz: 

“Gregor arrastou-se um pouco mais para a frente, mantendo a cabeça rente ao chão de modo a poder cruzar seus olhos com os dela se tivesse alguma chance. Seria ele um animal, se a música era capaz de cativá-lo a esse ponto? Pareceu-lhe que algo estava a lhe indicar o caminho na direção daquele alimento desconhecido de que ele tanto precisava. Resolveu avançar até a irmã e puxar a barra de sua saia, para indicar-lhe que ela podia ir ao quarto dele com seu violino, pois ninguém ali na casa admirava tanto sua arte quanto ele”.

A música redime o que resta de humano nos monstros, recorda-lhes um tempo em que eram humanos em plenitude, traz-lhes uma esperança de salvação e de retorno. Ser capaz de se comover com a música é um sinal de que não se é completamente monstruoso. Como se o monstro dissesse: 

“Ainda sou um homem, e isto que é tão plenamente humano não me é de todo estranho”.







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