Foi muitos anos atrás, no antigo bar do velho Ferreira, o popular “Caldinho de Peixe” ali no Largo da Luz (que, suspeito, ninguém mais chama de Largo da Luz, nem de Posto Futurama). Um sábado de sol lancinante e de um calor insuportável que tentávamos suavizar com doses contínuas de Casa Grande e xícaras e mais xícaras de caldo fumegante. Nossa mesa se misturou com a de outros caras, o sol foi entardecendo, todo mundo começou a pagar e ir embora, ficamos eu e um sujeito. Por alguma razão eu comentei que tinha estudado no Estadual da Prata, e o cara (alguns anos mais velho do que eu) disse: “Ah, então eu devo ter te carregado muitas vezes. Eu fui chofer no circular da Prata”.
Já me referi a este mítico ônibus (“O ônibus da Prata”, 27.11.2004). Naquele dia, rememorei com o motorista (digamos que se chamava João) uma porção de episódios da época, e a certa altura comentei: “Mas deve ser um saco, esse negócio de ficar fazendo circular, não é? O mesmo trajeto, a mesma coisa, o dia inteiro...” Ele falou: “Ah, isso depende. Eu ficava procurando coisas pra me distrair. Por exemplo, eu parava num sinal, e olhava pra um boteco que tinha ao lado, aí via um cara sentando numa mesa com uma mulher, os dois muito sérios. O sinal abria, eu arrancava. Quarenta minutos depois, no circular seguinte, eu parava de novo no mesmo sinal, olhava de novo: já tinha duas cervejas em cima da mesa, e o cara já tinha puxado a cadeira pra junto da cadeira dela. Aí eu pensava: Eita, a coisa tá esquentando! E assim por diante”
João me deu nesse dia uma aula de auto-ajuda. Porque somos nós que decidimos considerar algo chato – ou interessante. Ele transformava o percurso dele numa série de pequenas cenas interessantes, e as acompanhava como quem acompanha novela. Era o movimento nas mesas de um bar, era um grupo de pedreiros erguendo uma parede numa construção, era uma turma jogando pelada no balde do Açude, era uma fila na calçada de um prédio público avançando a passo de lesma, era o movimento num posto de gasolina... João ficava “controlando” aquilo tudo a cada volta, acompanhando o que acontecera, tentando adivinhar o que podia ter acontecido no intervalo entre uma passada e outra. Mesmo quando tinha que passar direto sem poder dar muita atenção a uma cena, tudo bem, porque dois quarteirões mais adiante tinha a próxima cena, cujo andamento ele também estava doido pra acompanhar.
Ter curiosidade pelo mundo, pelas coisas em volta, é a melhor auto-ajuda que pode existir para evitar o tédio, o embrutecimento, o desalento, a falta de sentido. Somos nós que projetamos sentido nas coisas. Eu ando de ônibus até hoje, e em cada um dos meus percursos rotineiros tenho os “palcos” onde sempre está acontecendo algo interessante, algo que me mantém curioso e alerta, que não me deixa ligar o piloto automático e desperdiçar alguns minutos que eu poderia aproveitar melhor pensando, imaginando, tendo idéias.
Um comentário:
Montaigne dizia que somos nós que declaramos algo ruim ou bom.
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