“Memes” são aqueles grãos de idéia que se instalam em nossa memória e parecem ter ali uma presença tão vívida que se mantêm à tona de nossa consciência. São aquelas coisas que ouvimos e que por alguma razão nos parecem interessantes, e ficam sempre “na ponta da língua”, prontas para serem passadas adiante na primeira conversa.
Provérbios, slogans, trocadilhos, clichês, lendas urbanas, preconceitos, fofocas, boatos...
Grande parte de nosso material bruto para conversa tem algo de meme, funciona como um meme. (Ver “Os memes”, 23.5.2003)
Os memes, como a gripe, propagam-se no boca-a-boca, ou melhor, no voz-a-voz.
Machado de Assis, um fazedor de frases como há poucos, tinha a noção clara de como estas coisas acontecem, e embora não se tenha detido a teorizar o processo, ilustrou-o de forma cabal em pelo menos dois escritos.
Um destes é “O Anel de Polícrates” (em Papéis Avulsos, 1882), um diálogo entre dois personagens, em que “A” explica para “Z” detalhes da vida de um intelectual, um tal de Xavier (inspirado em Artur de Oliveira, amigo de Machado que morreu tuberculoso aos 30 e poucos anos).
Xavier tem um dia uma idéia que lhe parece brilhante, e que se cristaliza numa frase: “A vida é como um cavalo xucro, ou manhoso; e quem não for bom cavaleiro, que o pareça”. Xavier profere a frase a um amigo, e nas semanas seguintes a reencontra na mesa ao lado num restaurante, numa roda de comensais num baile, num editorial de jornal, numa comédia no teatro, e por fim, suprema ironia, a ouve dos lábios moribundos do próprio amigo a quem a dissera pela primeira vez. Recomendo a leitura do conto, em que há muito mais que isto.
O outro texto é “Evolução”, em Relíquias de Casa Velha (1906), que começa de uma maneira bem machadiana: “Chamo-me Inácio; ele, Benedito”. Os dois se conhecem numa viagem de diligência a Vassouras; falam dos problemas viários do país, e Inácio comenta: “Eu comparo o Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro”.
Daí em diante, Benedito irá se apropriando aos poucos da frase do outro. Dias depois a recorda a Inácio, dizendo; “Como o senhor dizia...” Os anos passam, os dois continuam amigos, Benedito entra para a política. Encontram-se por acaso em Paris, e a certa altura ele lembra a Inácio: “Lembra-se do que nós dizíamos na diligência de Vassouras? O Brasil, etc. etc.”
Corre mais um ano; Benedito torna-se deputado, redige seu discurso de estréia e o mostra a Inácio, que se depara a certa altura com isto: “E aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo, em viagem pelo interior: o Brasil, etc. etc.” Inácio fica boquiaberto e silencioso, e só lhe ocorre atribuir este fenômeno de mutação da paternidade de uma idéia a um efeito da Lei da Evolução, de Herbert Spencer.
O mundo das idéias e dos memes, amigos, sempre foi uma Internet “avant la lettre”. Nossos bisavós já copiavam e assinavam embaixo.
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