quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

0812) Notas dum pintor flamengo (24.10.2005)


("Moça com Jarro de Água", Vermeer)

“Na minha já remota infância, imaginava eu que um quadro era feito a partir das bordas para o centro, já com as cores, texturas e formas definitivas. Pensava que se alguém entrasse no ateliê de um artista o encontraria diante de um quadro metade em branco e metade já do jeito que estaria sendo visto, anos depois, nas paredes dos museus. O artista expandia essa imagem pronta por sobre a superfície vazia, até preenchê-la por completo. Parece absurdo? Pois consta ser assim que muitos poetas fazem: tomam de uma folha de papel em branco e tentam inscrever nela as palavras definitivas, na ordem definitiva, até o ponto final.

“Um quadro é feito por camadas, esboços rápidos a carvão que logo são cobertos por desenhos que aos poucos vão sendo preenchidos com tinta. É assim que sei trabalhar,
indo da visão do conjunto para as partes, do equilíbrio geral das formas para a individualização e variedade dos detalhes. Sem ter uma idéia geral em mente desde o início, a quantidade de tentativas e erros se multiplica muitas vezes.

“Bem sei que há escolas modernas que prescindem deste processo: os abstracionistas, os tachistas, os “action-painters” e outros. Mas lembre o leitor que cultivo uma arte onde há não só várias camadas de tinta, mas várias camadas de processos organizativos, se bem me exprimo. Há o conteúdo “literário” do quadro, sejam florestas, sejam personagens, sejam montanhas, castelos, salas de visitas ou vultos mitológicos. Há a composição do quadro, que deve ser atrativa ao olho e desafiadora ao espírito. Há o jogo dos volumes e profundidades, a alternância dos claros e escuros, a escolha e posicionamento do que seja vertical, horizontal ou oblíquo. Cada fase destas requer um planejamento que não colida com as fases anteriores e que deixe espaço para as seguintes.

“Daí que tantas vezes o espectador da pintura se decepcione: “Mas é só isto, este quadro tão famoso? Uma mulher amassando pão perto de uma janela?” Uso o termo espectador a propósito. Pessoas assim gostam de quadros que, pelo inusitado de seu conteúdo literário ou pelo agressivo de suas cores, tome de assalto seus sentidos e se lhes imponha com autoridade. Querem, numa palavra, espetáculo. Quadros como os meus, no entanto, pedem não um espectador, mas um Leitor: alguém que sinta prazer em concentrar o foco da atenção num detalhes sem perder de enquadramento o geral da obra; alguém que destrinche, que decifre, que compare, que interprete, que vá e volte seguidamente de um ponto para outro até perceber as camadas de intenções, nem sempre evidentes, que articulam o Todo.

“Diferentes pinturas exigem diferentes leituras ou apreciações; não é o fato de comungarem tintas e telas que as transforma numa mesma espécie de artifício. Não se deve esperar, da música de saltimbancos, arquiteturas de uma sinfonia, nem se deve exigir desta a liberdade de improviso e a feliz imprevisibilidade que são as alegrias daquela”.

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