(Biblioteca do Trinity College)
Eu tive um sonho, e acordei hoje mais profético do que Martin Luther King. O pastor sonhava com um dia em que os negros teriam direitos iguais aos brancos. Eu sou mais modesto: sonho com o dia em que toda cidade brasileira terá uma Biblioteca Pública. Estarei com febre, com alucinações? Que nada. Não sonho com biblioteca de filme americano: edifícios imponentes, leões de pedra ladeando as escadarias, enorme pé-direito em mármore, centenas de mesinhas dispostas em grade. Penso em bibliotecazinhas modestas como muitas que já vi. No centro da cidade, de frente para a praça onde há também o cinema e a igreja, tem aquela casinha amarela, espremida entre uma barbearia e uma lanchonete. Você entra, e lá dentro tem quatro ou cinco mesas de formatos e tamanhos diferentes (que claramente foram doadas por particulares), um birô com uma bibliotecária atenta e um fichário do lado, e ao longo da parede umas estantezinhas com livros.
Não são obras raras, obras caras. São aquelas velhas coleções encadernadas que se encontram nas salas de tantas famílias brasileiras, compradas a prestação numa época remota em que livros eram vendidos de porta em porta. É aquele Monteiro Lobato verde-escuro, aquele Jorge Amado vermelho-e-branco com letronas, aquele Dostoiévski vermelho da José Olympio cravejado de maravilhosas gravuras de Darel, Lívio Abramo, Goeldi. São as enciclopédias tornadas obsoletas pela Internet: a Delta-Larousse verde-escura, a gigantesca Mirador, a manuseada Barsa. Tem aquela coleção branca do Prêmio Nobel com uns autores que ninguém sabe mais quem são (quem diabo era Theodor Mommsen, Bjornstjerne Bjornsson?), tem aquela coleção verde com os melodramas de A. J. Cronin, tem o saudoso “Tesouro da Juventude”, e não esqueçamos os refugos das coleções de bancas de revistas: “Os Pensadores”, “Os Imortais da Literatura”, “Os Economistas”...
Muitos amigos meus hão de torcer o nariz diante de um tesouro cultural tão defasado, mas não reside aí o X da questão. O X é a existência de milhões de garotos e garotas, Brasil afora, que são doidos para ler mas não têm como, porque em suas cidades não se vendem livros, e mesmo que vendessem eles não teriam dinheiro para comprar. E não me venham com conversa de que por causa da Internet e dos videogames ninguém se interessa por livros. Quem gosta de ler gosta de livros. As bibliotecas que descrevi acima existem. Já as vi, com variações, espalhadas pelo Brasil afora, e quando as vi o que menos olhei foram as estantes. Olhei as caras mulatas ou caboclas dos adolescentes do Pará, do Paraná, do Espírito Santo, do Estado do Rio, de Minas, todos de olho enfiado num livro de Érico Veríssimo, num “Dicionário da Mitologia”, numa “Veja” do ano passado, num romance de Agatha Christie, num volume de Castro Alves. Lêem porque pertencem a uma elite: a das pessoas que tiveram um sonho e perceberam que não é sonho.
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