sexta-feira, 28 de março de 2008

0318) Poesia sem livro (27.3.2004)



(The Pillow Book, de Peter Greenaway)


Falei ontem sobre a poesia-publicada-em-livros, o que equivale a falar dos filmes-que-passam-no-cinema, que são a única espécie de filmes que existem, na opinião de muitas pessoas (principalmente as que fazem tais filmes). 

Mas, assim como existe vídeo digital, filme super-8, curta em 16mm, filme-de-animação-com-massinha, e incontáveis outros tipos de filme que um cinema jamais verá, existe também a poesia que tem espaço em todo canto, menos num livro.

Quando eu era cineclubista, observei numerosas vezes como os cineastas profissionais, que faziam longa-metragens em 35mm., suportavam com estoicismo o entusiasmo da rapaziada que fazia documentários curtos em 16mm., e não tinha a menor paciência para com os “porra-loucas” que faziam filmes experimentais em super-8. 

Era uma luta de classes sociais no interior de uma atividade artística: havia “os que faziam Cinema de verdade” e os que “estavam brincando de fazer cinema”. Algo semelhante ocorre na atitude dos poetas-de-livro com relação aos poetas de cordel, aos poetas que recitam na praça ou em botequins, aos poetas da geração mimeógrafo, aos letristas de MPB.

Para alguns, essa atitude elitista é cultivada por quem pertence a uma burguesia dona das rédeas da produção cultural (leia-se: editoras, revistas, suplementos literários, clubes literários, academias, cursos de letras, etc.). 

Estas pessoas têm todo o interesse em só considerar Poesia a produção que está sob seu controle e que pode lhe proporcionar os respectivos lucros simbólicos, em forma de prêmios, prestígio, convivência social com gente mais rica, títulos, empregos públicos, etc. Grande parte da história da poesia ocidental transcorreu dessa forma.

Essa Poesia, simbolizada no livro, é inalcançável pelos poetas-de-rua, sejam eles beatniks cabeludos, cordelistas de alpercata e terno-de-mescla, letristas de samba-de-morro, sonetistas de fim de semana, violeiros repentistas, tiradores-de-verso do maracatu rural e da folia-de-reis... 

Todos estes se consideram poetas, com alguma razão. E todos também sabem que não o são, e só o serão se um dia publicarem “um livro de verdade”, parecido com os que os poetas de verdade publicam. 

Já vi muitos cordelistas sonhando com isto: já publicaram centenas de títulos e milhares de poemas, mas comentam com nostalgia: “Tô com 65 anos e ainda não fiz um livro...”

São poetas, esses caras? São e não são. São, porque tecnicamente falando o que produzem é poesia, não é pintura-a-óleo nem escultura-em-madeira. E não são porque o que fazem passa ao largo da História da Poesia Brasileira, de uma tradição literária brasileira que só leva em conta o que é registrado em livro. 

É como uma História do Cinema Brasileiro que ignore o que foi feito em curta-metragem, ou em bitolas menores. A História é sempre incompleta. Disse alguém que a História é sempre escrita pelos vencedores; pois digo eu que escrever a História é a última batalha, aquela que define quem de fato venceu.





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