(David Alfaro Siqueiros, "Echo of a Scream", 1937)
O mundo está ficando um lugar impossível de se habitar.
Vou ao supermercado ao meio-dia, o que não é uma das coisas que me deixam de bom-humor. Confiro a lista e empilho coisas no carrinho. Batata, banana, abóbora, alho. Bife, frango, fígado. Cerveja, refrigerante, mineral-com-gás.
O problema é que o supermercado passou por uma reforma recente, e tudo mudou de lugar: onde era a prateleira de sucos é agora a estante de vinhos, onde ficava o balcão de frutas é agora o balcão de carne-seca e sal...
Mudou tudo. Está tudo maior, mais bonito e mais caro; é a saúde-com-anabolizantes do capitalismo brasileiro. Passo horas procurando o lugar onde tem lâmpada. (Não, não pergunto. Mulher adora perguntar onde ficam as coisas. Homem que é homem insiste até descobrir sozinho.)
Aí me aparece um pirralho com um pacote de biscoito na mão: “Moço, passa isso no caixa pra mim?...”
Pronto: acabou meu dia. O camarada já está enfarruscado com a vida... e agora vem mais esta. Olho para o guri. É um mulatinho de seus 10 anos, com uniforme de escola pública, e mochila às costas. Isso deve ser golpe. A família manda botar farda pra dar credibilidade. Se eu aceitar comprar o biscoito, daqui a pouco ele vem com um litro de Ballantine: “Dá pra passar isso aqui? É pra minha Vó, ela sofre de pressão baixa...”
Fico me roendo em dúvidas. Por que logo eu, minha Mãe do Céu? Tanta gente aqui dentro, e o moleque vem pedir a mim. Isso é golpe, é esperteza da família. A mãe apronta ele, e aconselha: “Procure alguém que pareça ter bom coração... Aqueles caras com jeito de católico ou marxista, gente que acredita na humanidade...”
Suspiro fundo. “Tudo bem, põe aí.” O guri põe o biscoito e eu lhe dou as costas, vou pegar o filtro de café e descubro que a prateleira agora é de conservas.
Quando me viro, o que vejo? Lá vem o garoto, empurrando meu carrinho! Acabou-se minha paz. A gente não pode nem ter um gesto humanitário sem que eles queiram logo grudar na gente.
Este é o meu problema com as virtudes teologais: Fé e Esperança tudo bem, a gente pode exercê-las em paz, no sofá, de braços cruzados, mas a tal da Caridade obriga a gente a se relacionar com desconhecidos. Que mundo!
O menino fica me assessorando à revelia até que por fim passo no caixa, ele agradece feliz e dispara de rua afora com o biscoito na mão. Tomara que esteja mesmo indo para a escola, e não para a boca-de-fumo.
Tem horas que eu preferiria que um camarada desse me abordasse de canivete em punho, numa rua mal iluminada. Eu teria um bom pretexto para sair correndo e nunca mais olhar para a cara dele.
Não é pelo preço do biscoito. É por este espinho encravado num lugar que não conheço, remorso de crimes que eu não me lembro, essa pedra de estilingue estilhaçando o espelho-meu. Cai fora, pirralho, não olha sobre o meu ombro enquanto escrevo, que assim eu me desconcentro.
Um comentário:
Nossa... O que dizer? Caramba. Na falta de amparo para texto tão dolorosamente agudo, saio de banda: não é abóbora, é gerimum, hômi, rapaz!
Mas "o décimo terceiro tiro me assassina..."
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