Eu tenho para mim que os Grandes Artistas devem servir à gente como bússolas. Ajudando a gente a se orientar. Indicando direções. Permitindo que a gente perceba com nitidez os limites do nosso mundo, e o ponto que estamos ocupando no interior destes limites. Mas o fato de a bússola apontar o Norte não quer dizer que a gente tenha que navegar na direção do Norte!... Ela aponta o Norte por causa dos metabolismos magnéticos dela, ou coisa que o valha. É a idiossincrasia das bússolas, apontar para o Norte. (Rapaz, eu tô polissilábico hoje, preciso me policiar.)
Indo mais fundo nesta metáfora, eu diria que um grande artista, digamos, William Shakespeare, é na verdade um “Norte magnético” e sua obra é que é a bússola, a agulha imantada que aponta na direção dele. Quando pegamos num exemplar do Macbeth ou quando assistimos uma montagem das Alegres Comadres de Windsor, essas obras são agulhas imantadas que nos dizem: “Veja! Lá está William! Lá está a imaginação fértil, as sacações psicológicas, o brilhantismo verbal dele, seu pessimismo e seu otimismo com a natureza humana, o realismo cruel e o humor cheio de leveza dele... Lá está o Norte do universo que produziu essas obras, e seu nome é William Shakespeare” Estas obras não estão nos dizendo “faça isto também!” Elas nos mostram um dos pontos extremos, um dos pontos mais elevados do fazer poético humano. O resto é conosco.
Penso nisto todas as vezes em que me debato, ou vejo gente se debatendo, nas contradições aparentemente insolúveis entre Grandes Artistas que têm visões do mundo muito diferentes, ou até antagônicas. Os exemplos são incontáveis. Ariano Suassuna x Caetano Veloso. Henry Miller x Jorge Luís Borges. Pink Floyd x Sex Pistols. Sam Peckinpah x Charles Chaplin. Augusto dos Anjos x Vinicius de Moraes. Elomar x Cazuza. João Cabral x Pablo Neruda. Chico César x Antonio Nóbrega. Podem prosseguir … não falei que eram incontáveis?
Sempre que me propõem uma dupla desse tipo e me perguntam quem tem razão, digo: “Os dois têm razão. Um me aponta o Norte, o outro me aponta o Sul. O resto é problema meu.” A verdade é que, se quaisquer dois destes artistas tivessem exatamente a mesma visão, repetissem as mesmas opiniões, trouxessem as mesmas contribuições ao mundo... então um dos dois seria desnecessário. Será que eu preciso mesmo optar pelo Movimento Armorial e abrir mão do Tropicalismo, ou vice-versa? Pelo contrário. A existência desses dois pontos cardeais acaba sendo muito útil, e quanto mais afastados eles estiverem, melhor – porque vai existir um terreno muito mais vasto a ser percorrido, explorado e cultivado por mim. Todos esses artistas são grandes: viveram suas vidas, trabalharam intensamente suas obras, tornaram o mundo mais Real depois de passarem por ele. São bússolas, dezenas de bússolas, que me mostram uma inesgotável rosa-dos-ventos do que é possível fazer. Abrirei agora uma cerva gelada, e brindarei a todos.
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