...assim como a canção está para o CD? Discussões recentes sobre poesia, pessoalmente ou através de textos, me levam a tocar de novo num assunto já abordado aqui: pode existir poesia fora dos livros? Por exemplo – em letras de canções populares?
Já falei sobre isto em “O poeta principiante” (25.10.2003), “Primo rico e primo pobre” (29.11.2003), “Santo nome em vão” (24.12.2003) e outras. Se pode, ou se não pode, então por que é assim? Acho que a resposta a esta pergunta depende (eita, que agora eu vou dizer uma coisa originalíssima!) do que a gente chama de “poesia”.
Poesia é um texto em verso publicado num livro. Tenho plena consciência de que para algumas pessoas esta frase é um óbvio ululante, e para outras um total absurdo.
Já tomei muita cerveja com ambos os grupos. Os que acham óbvio lembram que existe uma tradição poética, uma História da Poesia que trata das obras publicadas em forma de livro, por poetas como Drummond, Bandeira, João Cabral, Cecília, e mais antigamente Bilac, Castro Alves, Camões, Dante, etc.
Poesia, portanto, é tudo que bebe nesta tradição, tudo que prolonga esta tradição, tudo que dialoga com ela, mesmo quando se trata de questioná-la ou negar sua importância – como o fizeram os modernistas de 22, por exemplo.
Os defensores desta tese não se consideram elitistas. Argumentam eles que os livros dão à poesia a divulgação e a perpetuação necessárias para que ela seja uma espécie de consciência lírica ou épica de um povo, de uma época.
O próprio conceito de nacionalidade se funda em torno de um conjunto de sentimentos, valores e imagens expressos num poema que se torna símbolo nacional, tanto quanto a bandeira ou o hino do país. Não existiria a Itália que conhecemos se não existisse a Divina Comédia, não existiria Portugal sem Os Lusíadas, não existiriam os Estados Unidos sem as Folhas da Relva (que neste aspecto podem ser consideradas um vasto, único poema), e assim por diante.
O livro é o espaço da poesia, porque é o único que consegue acomodar suas gigantescas proporções, assim como o teatro é o espaço da ópera. Nunca ouvi falar em ópera-na-rua, em ópera-na-praia. Na produção poética, pode haver um varejo de plaquetes e de recitais, mas é no livro que o que é realmente grande encontra sua própria dimensão.
O exemplo maior disto é a obra de Homero, que certamente lançou mão de fontes orais e dispersas, mas só se tornou o que é depois de tornar-se Livro.
O poeta-de-livro olha para os poetas-sem-livro do mesmo jeito que o arquiteto do Taj Mahal olha para o arquiteto que projeta um restaurante na orla: com um misto de simpatia paternal, cauteloso distanciamento, e certeza íntima de que, como dizia Tim Maia, “uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa”.
Sem dúvidas tem suas razões para pensar assim, e digo isto porque também o penso nos dias pares. Mas amanhã eu gostaria de examinar outras coisas, que penso nos dias ímpares.
(continua amanhã)
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