Assim como o pintor Van Gogh e o bluesman Robert Johnson, o escritor Franz Kafka deve ter murmurado, no seu derradeiro minuto de consciência: “Pense numa vida jogada fora!” Todos três tinham motivos para pensar assim, mas o fato é que estavam enganados. O Acaso, aquele deus inescrutável, que concede a uns os 40 milhões da Mega-Sena e a outros um raio na cabeça, fêz com que os quadros do holandês, as canções do americano e os livros do tcheco acabassem se salvando da vala comum. E o Mercado, que não perde tempo, transformou os três em fonte inesgotável de milhões de dólares. Uma situação, como direi? Kafkeana.
Este adjetivo talvez seja a mais imediata herança deixada pelo judeu tímido que morreu em 1924 deixando atrás de si uma porção de problemas não resolvidos, amores não consumados e livros difíceis de classificar. A obra de Kafka foi interpretada como uma premonição do nazismo, como uma busca religiosa, como uma paranóia de migrante em país estrangeiro, como um ajuste de contas freudiano com um pai autoritário. Nenhum desses temas, contudo, é propriamente kafkeano.
Usamos o termo “kafkeano” quando nos referimos a qualquer situação onde as conexões de causa e efeito parecem se romper, se dissolver. As pessoas nesse mundo não são ameaçadas por inimigos, perseguidas por monstros, tentadas pelo Demônio. Não existe um Mal personalizado, nítido, que traga uma ameaça específica. O problema com o mundo de Kafka é que as coisas nele não fazem sentido. Em “O Processo”, o escrevente Joseph K. é preso na primeira página e executado na última. Qual o motivo dessa acusação? Não o sabemos. Em “O Castelo”, o agrimensor K. pretende ter acesso a um Castelo, sem nunca o conseguir. Por que? Não o sabemos. Suas histórias são parábolas sem “moral da história” que as explique.
Em “O Processo”, temos um acúmulo de acontecimentos, mas nunca sabemos quem lhes deu origem, e por quê; é um pesadelo de efeitos sem causa aparente. Em “O Castelo”, K. tenta, por todos os modos, chegar até o Conde que domina o Castelo, mas todas as suas tentativas dão com os burros nágua: é um pesadelo de causas que não produzem efeito. Kafka inaugurou uma nova espécie de fantástico, que reside na sintaxe das coisas (ou seja, no modo como elas se articulam e se determinam entre si) e não na sua semântica (ou seja, na natureza das coisas propriamente ditas). Por este ângulo, “A Metamorfose”, onde o personagem acorda transformado num inseto, é menos kafkeano que as outras novelas, pois nela irrompe um elemento indiscutivelmente fantástico, irreal. A história “kafkeana” típica, contudo, é composta de cenários, personagens e eventos banais, cotidianos, só que articulados com uma lógica de pesadelo. É nessa lógica de absurdo que a literatura de Kafka parece ter adivinhado o nosso mundo, onde super-população, alta tecnologia e concentração de capital pulverizaram o pouco que restava de conexão entre intenções, causas e efeitos.
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