Um dia eu estava numa sala de visitas com um casal idoso. O Jornal Nacional mostrava um show de rock não sei onde: o habitual amontoado de jovens de camisa preta, pulando feito malucos na frente da câmara, agitando os braços, gritando “Ú-Tererê” (ou o equivalente atual a Ú-Tererê), e fazendo aquele gesto tradicional: a mão espalmada, o polegar puxando para dentro os dedos médio e anular, o indicador e o mindinho esticados ao máximo.
O dono da casa falou que não sabia o significado daquilo. Visitante, solícito, não querendo deixar a conversa morrer, eu me apressei a explicar:
“São os chifres do diabo, assim, ó...” -- e reproduzi o gesto.
Pra quê que eu fiz isso? O casal teve um sobressalto, o velho empalideceu, a velha benzeu-se e murmurou:
“Meu deus, meu deus... além de drogados, são satanistas”.
Eu devia ter dito que eram as orelhas de Batman ou de Scooby-Doo, mas os velhos talvez não ligassem os nomes à pessoa. E pra falar a verdade, a pergunta que me fica (e que eu gostaria de ter respondido ao casal) é:
“Por que os jovens não têm medo do Diabo? Por que não fogem dele, por que resolvem encará-lo, tirá-lo pra dançar, domesticá-lo, esvaziar sua ameaça, trazê-lo de um contexto do Mal e da Violência para um contexto do Bem, da Festa e da Alegria?”
De vez em quando aparece nos jornais que um desses adolescentes que fazem esse gesto matou alguém. Aí pronto:
“O rapaz andava de camisa preta! Tinha argolas na venta! Escutava Iron Maiden! Só poderia acabar assim!”
Eu não acho. Gente com camisa do Palmeiras ou do Vasco também mata, e a culpa não é da camisa.
Os jovens querem acreditar em alguma coisa. Tem Deus na jogada, mas eles aceitariam melhor um deus que os acompanhasse às festas, que os aconselhasse em seus namoros. O rock os acompanha; a religião, não.
O Cristianismo é visto, de forma que considero até injusta, como uma religião que glorifica o sofrimento. Seu símbolo é um homem torturado e morto. Não é essa a mensagem do Cristianismo; mas parece ser, pela inevitável simplificação de uma doutrina de massas. Parece querer dizer que sofrer é bom, que estamos aqui para sofrer calados, e que a alegria, a sensualidade e a festa coletiva pertencem ao demônio.
Quando os jovens precisam queimar as overdoses de energia que seu organismo produz, quando precisam acasalar-se, afirmar sua independência e individualidade, eles recorrem à imagem que se identifica com essa auto-afirmação.
Os deuses antigos que correspondem a ela (Dionisos, Pan) foram identificados pelo Cristianismo com o Diabo.
As religiões deviam inventar dois deuses do Bem, para esvaziar a força do Diabo.
Um seria puro, sério, espiritualizado. O outro seria uma espécie de Dionisos grego: um deus gente-boa, do-Bem, conquistador, boêmio, festeiro.
É um lado que a religiosidade popular sempre se esforçou para suprir: aquele arquétipo pelo qual que Nietzsche ansiava – um deus que saiba dançar.
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