quarta-feira, 19 de março de 2008

0283) Ganhei (perdi) meu dia (15.2.2004)




Me digam se a vida não parece uma coisa escrita por Woody Allen. Recentemente, um cidadão de 73 anos, residente no Estado de Indiana (EUA) foi sorteado num concurso de loteria onde o sorteio é gravado em video-teipe e vai ao ar algumas horas depois. 

Mr. Carl Atwood estava presente ao sorteio em que seu número foi contemplado com um prêmio de 57 mil dólares. Ao recebê-lo, ele disse: “Estou muito agradecido a todos. Nunca esperei ganhar um prêmio tão grande. Agora vou poder comprar um bom automóvel.” 

Horas depois, o sr. Atwood fêz uma visita à loja onde havia comprado o bilhete premiado (talvez para agradecer, comemorar...) e na saída, ao atravessar a rua, foi atropelado por um caminhão e morreu no hospital. 

Nesta mesma noite, o programa foi ao ar, e ao anunciar sua vitória a estação colocou no ar uma foto sua, com o letreiro: “Em memória de Carl Atwood”.

Parece brincadeira, não é? Mas uma pequena parábola urbana como esta pode ser lida de diferentes maneiras. Para alguns, é um aviso de que Deus (ou o Destino) dá com uma mão e tira com a outra. Para cada benefício, uma penitência. Para cada prazer, uma punição. Ter muita sorte é uma espécie de pecado, que deve ser expiado tendo muito azar. 

É a teoria moral dos prêmios e castigos, que embebe toda nossa cultura judaico-cristã. Ninguém será feliz impunemente. Ganhou na loteria? Pois aguarde!

Existe, contudo, outra teoria metafísica que dispensa os julgamentos morais. O sujeito tem duas escolhas: 1) uma vida calma, onde nada acontece de bom ou de ruim; 2) uma vida agitada, onde coisas boas e ruins acontecem em profusão. 

Ou seja: ele pode escolher se deseja reduzir ou intensificar o próprio campo probabilístico (v. “O campo probabilístico”, 3.9.2003). 

No caso de Atwood, quem sabe se dias antes ele não fêz uma prece: “Oh, Senhor... Não acontece nada! Setenta e três anos, nenhum problema resolvido, sequer colocado! Tá muito chato esse negócio aqui! Eu queria uma vida movimentada, onde acontecessem coisas fora do comum!” Aí Deus anotou numa caderneta, chamou o arcanjo... 

Podem achar que é uma explicação cínica, mas me parece mais equilibrada do que a velha história do castigo moral. Não existem castigos, prêmios, punições. Existem vidas onde nada acontece; e vidas onde acontece de tudo. Atwood teve 73 anos de uma, e um dia da outra.

E, filosofia à parte, podemos optar também pela explicação prática. Atwood tirou 54 mil dólares e nunca tinha visto tanto dinheiro na vida. Foi dar um abraço no dono da casa lotérica, provavelmente um sujeito que há 20 anos lhe vendia bilhetes e dizia, “Bote fé, seu Atwood! Um dia o senhor tira a sorte grande!” 

Foi lá, agradeceu, comemorou, e na hora de atravessar a rua estava tão eufórico que, pela primeira vez naqueles anos todos, esqueceu de olhar se vinha carro. 

As teorias metafísicas são muito úteis, mas eu sempre acho que tem um detalhe operacional que explica tudo.





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