sábado, 8 de março de 2008
0120) As águas do tempo (9.8.2003)
Quando as águas do tempo vão passando, vêm trazendo mil ciscos na corrente.
São as pequenas sujeiras desta vida, as palavras amargas que se escutam, os gestos brutos, as incompreensões por desdém ou por insensibilidade, as descortesias dos desconhecidos.
Vêm as sujeiras maiores também, que são as ruindades que nos fazem, as sacanagens planejadas à nossa revelia, o escárnio gratuito de quem não ousaria agir assim na nossa frente, as provocações dos vizinhos, as armações dos antagonistas no trabalho, dos falsos amigos.
Não tem força no mundo que consiga nos livrar dos esgotos da maldade. Tudo é despejado através de nós: vasculho, cisco, gravetos, bagaços de laranja, massa amorfa de plásticos e papéis, restos de comida, tufos de mato, lama do chão.
O ser humano despeja esses resíduos metafóricos à sua volta, voluntariamente ou não, pelo simples fato de existir, de entrar em atrito com os outros, de ter que atravessar todos os dias esta selva sem lei onde no primeiro contato com alguém nunca dá para se saber direito quem é fera ou quem está ferido.
Essa enxurrada passa através de nossa alma como se passasse por uma peneira. Nossa alma é uma peneira com aquela treliça metálica cheia de quadradinhos, através da qual a enxurrada escoa, e onde os detritos maiores são retidos. Aqui vai ficando um cisco, ali fica um caco de vidro, mais adiante um fósforo, uma tampa de garrafa, uns fios soltos de piaçava, uma meia furada, lata de cerveja amassada, embalagem vazia...
A água passa e essas coisas maiores vão ficando presas na treliça, vão se instalando ali, e a lama que continua a passar acaba servindo como uma espécie de argamassa que recobre esses resíduos, fixando-os, deixando-os presos ali com uma firmeza de quem se prepara para esperar que até as pirâmides se desmanchem em pó.
E o quê que uma pessoa faz, quando se vê assim, com a alma feito um filtro de sujeiras, todo contaminado pela poluição da vida? Bem, os outros eu não sei. Mas quando começa a doer, quando começa a incomodar muito (quando meu time perde, por exemplo), eu costumo deitar assim de noite e deixar que o silêncio e a escuridão passem através de mim, como se fosse uma água lenta mas forte, uma água que tudo arrasta.
E aí eu abro (como? não sei, só sei que é assim) os espaços da treliça, que em vez de estreitinhos como papel milimetrado vão se alargando, ficam como grades de palavras-cruzadas, depois ficam como tabuleiro de xadrez... E quanto mais eles se alargam mais água vai passando, e no passar elas desalojam a sujeira acumulada, que vai se desprendendo, se esfarelando, vai sendo lavada, vai sendo levada embora.
Eu fecho os olhos e deixo essas águas rolarem. São as mesmas águas do tempo que trouxeram aquilo para dentro de mim, mas como não param de passar, basta alargar os quadrados da peneira, e tudo que veio vai embora, vai embora, vai embora, e me deixa enxaguado pelas águas sem fim da noite e do silêncio.
(Este texto foi publicado no livro A Arte de Olhar Diferente, Editora Hedra, São Paulo, 2012)
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2 comentários:
Poxa, Braulio, que texto! Obrigado pelo presente. Que forma boa de deixar passar, de desapegar!
E não apenas as águas de março. Braulio Tavares nos brinda com as águas da vida. De todo instante, do calendário inteiro. No tabuleiro deste campinense trezeano há tantas peças teatrais quanto poéticas. Bravo Galo de Campina!!!
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