sexta-feira, 1 de novembro de 2024

5118) Tavinho Paes, 1955-2024 (1.11.2024)



O Rio de Janeiro ficou menor, menos inteligente e menos alegre com a partida do poeta Tavinho Paes. Tavinho estava hospitalizado há um tempão. Acompanhei pelo Facebook as suas postagens relatando os exames, a angústia da espera (“quando vão liberar a cirurgia?”, "autoriza, Unimed!"), os adiamentos, depois o começo da sofrida recuperação. E então... um silêncio. E por fim a notícia. 

 

Nem fui dos que conviveram muito com ele, e não devo ter muitos episódios pessoais para contar. Eram encontros na rua, no bar, na festa, em camarim de show. Quem conviveu com ele foi o Rio, a cidade que ele percorria como uma lançadeira, sem parar, impedindo que as águas estagnassem. Principalmente a Zona Sul, é claro, porque foi ali que o conheci, provavelmente nas mesas da Pizzaria Guanabara ou nos agitos do CEP 20.000, que ele ajudou a fundar. 



Fizemos parte dessa misteriosa entidade chamada de Poesia Marginal. Num tempo em que todo mundo se batia para ser publicado pelas grandes casas editoras, houve centenas de poetas jovens que deram de ombros, e começaram a publicar seus versos de forma precária, mas por conta própria. Mimeógrafo, offset, xerox, cordel. 

 

Quando cheguei aqui no Rio, percebi que para o carioca em geral, inclusive a imprensa, “marginal” era sinônimo de assassino, ladrão, bandido, estuprador. O rótulo “Poeta Marginal” vinha tingido disso tudo. 

 

Surpresa para mim, que visualizava o mercado editorial como um rio poderoso, carregando em seu “mainstream” os empaletozados poetas oficiais, enquanto nós caminhávamos no mesmo rumo – mas na margem. 

 

Íamos a pé pela margem, porque naquele tempo (Drummond já se queixava) “era livre a navegação, mas proibido fazer barcos”. 



Tavinho tinha um barco – o barquinho de papel que salva todos os poetas – e tinha um vento próprio que lhe enfunava as velas: o vento da fala, da recitação, do riso, da conversa, o sopro de vida que muitas vezes nem lembramos quando lemos o livro de alguém, mas está sempre presente quando alguém sobe num palco (numa cadeira, num caixote, num degrau) e manda ver. 

 

Seu formato preferencial era o livreto, de que a bolsa estava sempre cheia. 

 

“Toma, toma esse aqui, é o mais novo, esse aqui também é bom, leva dois, esse aqui eu lembro que você já tem, mas leva mais um e passa adiante.”  “Tavinho, eu estou sem bolsa.”  “Bota no bolso da calça. Você anda de metrô, que eu sei. Lê no metrô. Se gostar de alguma coisa, fica em pé e recita, grita, porra, acorda aquele pessoal.” 

 

Onde estão os livretos, agora que preciso deles?! Desaparecem no meio das estantes, nas gavetas, por entre as revistas, enfiados em algum livro grande. Livro pequeno é um problema. Os dele eram menores do que um folheto de cordel. 

 

“Isso aqui é um mini-cordel.”  “Chama do que você quiser, mas espalha, passa adiante.” “Você vende por quanto cada um?”  “Depende, não é essa a questão, vender é projeto, vender acontece, mas o importante é circular.” 

 

Vivia (penso eu) mergulhado naquela filosofia do “bendito quem semeia livros, livros à mão cheia...” 




E os recitais, que ele encarava com uma displicente segurança, mandando-ver com o destemor dos que têm na palavra falada o seu aviãozinho de papel. Aquela bossa de quem se sente à-vontade no fio da navalha do palco iluminado, e com aquele sotaque de malandro-erudito. 

 

Falei que ele circulava pela Zona Sul carioca?  Não tem problema, circulou por Campina Grande também, recitou nos meus bares, nos meus teatros, como quem se sente em casa. “Ô paraíba, tu tem música gravada por teu conterrâneo Genival Lacerda?...”  “Ih, rapaz... tenho não. Quem me dera.”  “Pois eu tenho.” 

 

Será que tinha mesmo? Não importa: ele tem música gravada pelo Trio Nordestino (“Parada Boa”) e eu não.  

 

É curioso, e triste, que em poucos dias a poesia carioca tenha perdido Antonio Cícero e Tavinho, dois poetas tão próximos e tão diferentes. 

 

Cícero era o filósofo, tímido em público, mas fluente e cristalino na escrita. O verso pensado, polido, engastado, mas na hora da leitura dando aquela impressão de que corre fácil como água da torneira. 

 

Tavinho era um camelô-de-si-mesmo, sempre com um livreto novo na ponta do braço e um trocadilho mordaz na ponta da língua. Criando e produzindo o tempo todo, dando a impressão de ser um barril transbordando, do qual a gente só percebia o que sobrava. E o que se derramava dava aquele barato que a gente só sente diante da frase brilhante, da frase salto-mortal. 



“Camelô” não é ofensa, e eu me chamo assim com frequência. O camelô descobre um belo dia que se não descer à calçada e apregoar sua água-de-coco as pessoas vão morrer de sede por não saberem que ela existe. 

 

Somos camelôs das redes sociais. Volta e meia estamos aqui compartilhando poemas, textos publicados, capas de livro, fotos de palestra, fonogramas gravados pelos amigos. Com esses tijolinhos (todos diferentes uns dos outros) estamos criando um edifício que não será nenhum Taj-Mahal – será algo que não existia antes e cujo formato final não chegaremos a ver. 

 

É a poesia que não se destina aos livros, mas à vida, ao momento, às pessoas de carne e osso. Algma coisa, claro, vai ter que resultar em livro, porque livro é uma coisa tão boa de se ter na mão, de se ter à vista, de entregar a alguém, de receber. O livro recolhe aquela parte que não se evaporou no fim de tantas conversas, tantos chopes, tantos cafés, tanto recitais, tantos bares enfumaçados. A poesia roda, roda, roda e acaba num livro, assim como a noite roda, roda, roda, e acaba no dia. 


A CIDADE DOS 1000 POETAS

Tavinho Paes

 

Eu nasci num subúrbio da maravilhosa

Cidade dos 1000 Poetas.

Nasci na noite do Iguana,

numa maternidade

ao sopé do Morro dos Ventos Uivantes

de cujo cume

o beato Sebastião via a ilha

que o cangaceiro Satanás cria ser real.


Minha mãe, naquela noite de luzes,

foi tão natural quanto a de Máximo Gorki.

 Meu pai,

cercado de famas e cronópios,

permaneceu acordado noite adentro,

fumando charutos da mesma marca

dos prediletos de Gabo

comprados naquela Tabacaria

que Pessoa via de sua janela.

Leia o resto aqui:

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_de_janeiro/tavinho_paes.html 







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