Sérgio Rodrigues, jardineiro do idioma, publicou há pouco tempo um artigo (“Scooby-Doo dos sete mares”) sobre a importância do “virundum”, uma criação cultural que, tal como o futebol, não teve origem no Brasil mas foi devidamente digerida e reinventada.
O “virundum” é o equivalente brasileiro do “mondegreen” norte-americano: a interpretação distorcida de um verso de música popular, gerando uma frase levemente absurda e em geral muito engraçada.
Já comentei aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/06/1100-mondegreens-na-mpb-2492006.html
Li o artigo com certo atraso, porque não assino a Folha de São Paulo, e para ler os textos dos meus articulistas preferidos dependo sempre de uma alma caridosa que os copie e pregue nas paredes comunitárias de uma rede social qualquer. Viva o dazibao controlvê.
Sérgio defende a importância do virundum como uma fonte inesgotável de prazer dadaísta e alegria poética:
Sim, na terra em que brotou o clássico indiscutível "trocando de biquíni sem parar" (por "tocando B.B. King sem parar", verso da canção "Noite do Prazer", da banda Brylho), a produção de virundums é tão vasta quanto variada.
Há quem aprecie a precisão onomástica de "Meu filho Válter Gomes dos Santos/ que é o nome mais bonito" ("Pais e filhos", Legião Urbana) e quem prefira o clima lisérgico de "Ao sair do avião/ Judy pisou num ímã" ("Açaí", Djavan).
Os exemplos citados são muitos, e os vários que eu não conhecia romperam minha casca espessa de mau-humor matinal, e me fizeram soltar a gargalhada de quem reencontra o prazer de estar-no-mundo.
O “virundum”, registra Sérgio, foi criado pela turma do Pasquim para ironizar o “Ouviram do...” que inicia o nosso hino pátrio. É muito comum a gente ouvir uma música à distância, num rádio ou TV, nm ambiente ruidoso, e entender mal certos versos. Os psicólogos estudam há muito esse processo em que identificamos os sons mais pelo contexto do que pela escuta em si. Ao ouvir mal o que outra pessoa diz, nossa mente pensa algo como “se ele está falando de tal-e-tal assunto, essa palavra que não entendi deve ser X ou Y”. Vamos preenchendo com a opção mais lógica.
Quando estamos em país estrangeiro, conversando em outra língua, esse processo é turbinado o dia inteiro.
O que há de interessante na arte do virundum é que ela começou com erros involuntários e se transformou numa distorção proposital. Uma guerrilha poética dadaísta. Pessoas portadoras do gene neurótico do trocadilho dedicam-se a inventar por conta própria essas torções num versinho inocente e disponível. E na primeira oportunidade, numa roda de violão ou numa platéia de show, mandam seu virundum a plenos pulmões.
Por que?
Eu penso que um dos processos essenciais – na invenção poética; na criação artística em geral; mais amplamente ainda, no uso coletivo da linguagem; e quem sabe até no universo mais micro-amplo das sinapses neuroniais – é a possibilidade de dar sentidos diferentes ao mesmo conjunto de estímulos.
Os
psicólogos usam como exemplo básico desta processo a imagem do cubo
transparente, cujas quinas podem ser vistas mais próximas ou mais afastados do
nosso olho, por uma decisão e um esforço consciente de nossa parte.
Claro que é importante haver algumas coisas que só podem ser lidas de uma única maneira, irredutivelmente. Isto é muito útil quando precisamos ter certeza absoluta sobre algo. A Ciência busca isso o tempo todo, num universo repleto de dados contraditórios, fugazes, heterogêneos, em-mudança-constante. A gente precisa poder de vez em quando se apegar a algo com um suspiro de alívio, de olhos fechados, cheios de confiança.Mas justamente pelo fato de nossa percepção do Universo – e da Linguagem – ser assim, é importante sabermos lidar com as formas ambíguas, indefinidas, contraditórias, mutáveis, estatisticamente imprevisíveis. Porque o mundo é feito basicamente delas.
Como usar isso literariamente?
Isaac Asimov dizia que seus contos policiais da série “Black Widowers” se baseavam geralmente num detalhe: na história há algo que pode ser visto de duas maneiras, todo mundo vê do jeito errado, e seu detetive, Henry O Garçom, vê do jeito certo.
Ser capaz de ouvir uma frase de duas maneiras é um exercício de imaginação, um exercício de uma função mental que nos obriga a atribuir um sentido, ou um segundo sentido, a alguma coisa. Como a pareidolia, que nos faz ver rostos humanos em formas aleatórias.
(foto: Jeroen Schipper)
Vou recorrer ao meu lugar-comum de sempre, o Surrealismo. Salvador Dali empregava o método que ele chamava de “paranóia crítica” em seus quadros, criando imagens que podiam ser vistas de diferentes maneiras.
Diz Dali em La Femme Visible, 1930 (citado em Maurice Nadeau, Histoire du Surréalisme, 1945, trad. BT):
Trata-se de especular com ardor sobre essa propriedade do devir ininterrupto de todo objeto sobre o qual se exerce a atividade paranóica, também chamada ‘atividade ultra-confusional’, que tem sua origem na idéia obsessiva. Esse devir ininterrupto permite ao paranóico, que o testemunha, considerar as próprias imagens do mundo exterior como instáveis e transitórias, para não dizer suspeitas, e ele tem o preocupante poder de permitir aos outros que verifiquem a realidade de sua impressão.
O paranóico é alguém que impõe um excesso de interpretação a fatos banais. Às vezes bastam uma buzina de carro na rua e o barulho do elevador para ele imaginar que agentes da CIA ou da KGB estão se encaminhando para sua porta.
Dali usa a consciência de que os fatos em si estão em mudança incessante (“devir ininterrupto”) e que cabe ao artista impor seu olhar, seu desejo, sua interpretação sobre esse torvelinho em perpétuo movimento. Apontar para uma nuvem e dizer: “Aquilo é um navio a vela”.
(Salvador Dalí, “Slave Market with Disappearing Bust of Voltaire”, 1940; no Dali Museum, St. Petersburg, Florida)
É apenas a prática deliberada do processo que nos faz (como já me aconteceu) ver na parede um lambe-lambe da banda “Sorriso Maroto” e ler, de relance, “Sobrado Mardito”.
Esse processo criativo, imaginativo, tem a mesma origem que o virundun, o mondegreen: a leitura errônea, proposital, de uma realidade que todos veem de um jeito e que o poeta, esse corruptor de rotinas linguísticas, consegue ver de um modo distorcido, novo, inesperado, hilário, surrealista.
Um comentário:
No livro “Magrafo – dicionário de palavras inexistentes” (Tomo), há um verbete para a letra de música que entendemos errado, com alguns exemplos; chama-se “soioto”.
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