Raymond Chandler já começava seu ensaio clássico “The Simple Art of Murder” (1944) dizendo: “A literatura de ficção, em qualquer de suas formas, sempre pretendeu ser realista”.
O que equivale mais-ou-menos a dizer: “Como eu sou um
mamífero que respira oxigênio, afirmo que todos os seres vivos, em qualquer de
suas formas, são assim”.
Essas afirmativas tão categóricas são uma forma de
petição de princípio, onde o autor legisla em causa própria, como se dissesse:
“Literatura é tudo que tem as características do que eu escrevo”.
Chandler estava certo em pensar assim. Não porque o que
diz é verdade, mas porque ele não poderia dizer, sentir ou enxergar de outra
forma. Ele é um escritor do romance realista, que se dedicou ao romance
policial com uma coragem quase suicida – e de fato conseguiu com sua obra
alargar o horizonte de expectativas do gênero.
Suas qualidades como autor são qualidades mainstream, do romance realista. Sua inteligência
psicológica e social, sua percepção cínica de como a sociedade capitalista
funciona, seu conhecimento e sua empatia para com as fraquezas e as coragens de
pessoas comuns, seu uso perceptivo e moderno da linguagem das ruas, seu olho
para ambiente e atmosfera, a verossimilhança emocional das reviravoltas nas
ações dos seus personagens.
Seus pontos fracos (ele era o primeiro a reconhecer) eram
enredo, dedução, pistas, indícios, horários, álibis... O feijão-com-arroz do
romance detetivesco, que ele nunca apreciou e nunca soube preparar direito.
Uma das anedotas mais famosas a seu respeito é de quando
alguém estava filmando The Big Sleep,
houve uma discussão entre atores, roteirista e diretor por causa de alguma
coisa na narrativa que não batia bem. Ligaram para Chandler: “Chandler, quem
foi, afinal de contas, que matou o motorista?” E ele respondeu: “Eu sei lá quem
foi que matou a porra do motorista, me deixem em paz.”
Provavelmente não sabia – e não se importava.
Chamamos de romance (ou conto) detetivesco àquelas
narrativas onde há um crime, e há uma pessoa (um policial de profissão, um
diletante, um investigador particular, etc.) que consegue entender os fatos,
criar uma interpretação deles e apontar o culpado. Essa pessoa é chamada “o
detetive”.
A narrativa detetivesca, portanto, tem como centro a
atividade desse detetive, sua avaliação das pistas, seu entendimento de como o
crime poderia ter sido cometido, até ser capaz de afirmar que o criminoso é aquela
pessoa, e as provas são estas aqui.
É uma fórmula, e talvez uma definição para literatura de
gênero seja a presença de uma fórmula que o leitor conhece bem e que já espera
encontrar, ao iniciar a leitura. Claro que com o passar dos anos a fórmula de
subdivide em dezenas, às vezes centenas de variantes, muitas delas tentando,
como é inevitável acontecer, “fugir à fórmula, negar a fórmula, virar a fórmula
de cabeça para baixo”.
Existe violência nos livros de Chandler, mas não tanta
quanto se presume. Nos seis romances que traduzi (O Sono Eterno, Adeus Minha
Querida, A Janela Alta, A Dama do Lago, A Irmã Mais Nova, O Longo
Adeus) Philip Marlowe briga bastante, troca tiros, mas só mata uma pessoa:
o pistoleiro Canino, no confronto final de O
Sono Eterno.
Os resenhadores da imprensa o chamam de mulherengo ou
conquistador: há vários episódios em que ele repele uma mulher que está se
oferecendo a ele, e as únicas que ele leva para a cama são Linda Loring, a
socialite de O Longo Adeus, e Miss
Vermilyea, a secretária de Playback.
Estamos muito longe do universo de Shell Scott, que
fatura uma loura por capítulo, ou do Nick Carter “Killmaster” de Donald
Hamilton, cujas cenas de sexo bastante detalhadas se estendiam por duas ou três
páginas.
Chandler é considerado um dos fundadores da escola hardboiled, mas essa escola avançou
tanto que hoje as aventuras de Philip Marlowe estão numa espécie de zona
intermediária entre o policial clássico de Conan Doyle e Rex Stout e as
investigações verdadeiramente hardboiled
de Mike Hammer (de Mickey Spillane).
Seus livros são essencialmente realistas, mesmo quando
fazem concessões, que ele admitia constantemente, ao que o gênero policial tem
de melodrama de aventuras. Chandler achava que cada fato isolado, cada evento
isolado de seus livros era totalmente possível, mas achava altamente improvável
que tudo aquilo acontecesse a um grupo tão pequeno de pessoas, num espaço de
tempo tão curto.
Essa opinião tão singela estabelece, na minha opinião, um
critério importantíssimo para se avaliar qualquer tentativa de “realismo
literário”. Já que a literatura é síntese, recorte, simplificação,
intensificação do real, cada vez que executamos um desses processos (que são a
própria razão de ser da literatura) nos afastamos da realidade.
“Ficção realista” é um oxímoro, uma contradição, um
paradoxo. A ficção totalmente realista é impossível, e foi satirizada por Jorge
Luís Borges num texto onde ele fala de mapas geográficos tão detalhados e
precisos que precisavam ser do tamanho do país que reproduziam.
Chandler
abriu seu ensaio citado no início dizendo: “Fiction in any form has always
intended to be realistic”.
Teria
sido mais prudente dizer: “Fiction in any form has always pretended to be
realistic”. Ou seja: “A literatura de ficção, em qualquer de suas
formas, sempre fingiu ser realista”.
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