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Eu me lembro de quando a gente foi morar na Vila dos
Motoristas, atrás do campo do Treze (também conhecido como “Estádio Presidente
Vargas”). Tudo era novidade, depois de termos morado uns 3 ou 4 anos seguidos
na rua Miguel Couto, o que, para quem tinha 10 anos, como eu, era tempo pra
caramba. Meu pai fez uma viagem ao Rio. (Ainda hoje, a expressão “Hotel
Serrador” tem um eco mítico em minha lembrança, e anos depois, quando o vi pela
primeira vez ali perto da Cinelândia, pareceu-me um pedaço de Campina.) Na
volta da viagem, Seu Nilo mostrou uns livros que tinha comprado no aeroporto. “É
uma editora nova que está começando,” explicou ele. A editora era a Editora do
Autor, e os livros eram a Antologia
Poética de Vinicius de Moraes, O
Homem Nu de Fernando Sabino, O Cego
de Ipanema de Paulo Mendes Campos e Ai
de Ti, Copacabana! de Rubem Braga. Que eu passei a devorar com olhos
arregalados, porque até nas capas, no projeto gráfico, eu sentia uma novidade,
uma modernidade no ar. Menino que eu era, fiquei “arriado dos quatro pneus” por
Vinicius e Sabino, mas Paulo Mendes Campos e o velho Braga eu só aprendi a
saborear bem mais tarde, depois dos vinte.
A gente se mudou em 1961 para o Alto Branco, momento
triunfal da primeira casa própria – e última, porque de lá para cá foi “a casa
dos meus pais”, e hoje é onde meu sobrinho Nilo Neto mora com a família. Meu
pai nunca soube dirigir e nunca teve carro. O Alto Branco era uma espécie de “zona
rural” naquele tempo, nem linha de ônibus tinha, tinha umas kombis que faziam a
circular, e só elas dão um livro. Imagine 15 pessoas e suas respectivas feiras,
num sábado, amontoadas ali dentro, e um cobrador em pé, encurvado, catando os trocados
de cada um. Meu pai começou a armar um esquema de pegar caronas, porque a
descida-e-subida era longa (descida até o Ponto Cem Réis e o Canal, e subida
dali em diante). Um amigo dele tinha um carro e morava perto. A gente saía do
Colégio Alfredo Dantas meio-dia (eu com 11 anos, Pedro com 7), Seu Nilo pegava
a gente e ficávamos assim-como-quem-não-quer-nada perto do carro do sujeito,
até que ele aparecesse e ofertasse uma carona. Na época eu era fascinado pelo
fusca, o famoso Volkswagen, e aprendi que o carro do nosso benfeitor era
parecido, era um Volksroll. Anos se passaram até eu perceber, por vias
transversas, que a marca era de fato um Vauxhall.
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Esse tempo em que eu estudei no Alfredo Dantas (foram cinco anos ao todo) teve altos e baixos. Por isso eu ainda hoje tenho fascinação por livros de garotos-sofrendo-na-escola. Não necessariamente bullying, embora naquele tempo fosse prática normal. Livros como O Ateneu (Raul Pompéia), Doidinho (José Lins do Rêgo), Anos de Ternura (A. J. Cronin), Books vs. Cigarettes (George Orwell), A Colônia de Férias (Emmanuel Carrère) e outros. Guri abestalhado como eu sofria muito. Um dia eu fui ao quadro-negro, e na volta à carteira... cadê minha bolsa com os livros e cadernos? Comecei a procurar, quase chorando (“se eu chegar em casa sem meus livros eu levo uma surra”), a professora interrompeu a aula e me mandou olhar em todas as carteiras da classe, pra ver quem tinha tirado. Silêncio, expectativa, risadas sorrateiras. Olhei em todas, e nada. No fundo da sala, que era espaçosa, tinha um painel de madeira encostado à parede, com fotos de formandos da turma tal. Tive então o paradoxal momento mais feliz da minha vida. A bolsa estava lá (tenho uma polaróide mental). Peguei e me sentei de novo, sem dizer nada.
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Falei que meu pai não dirigia; me lembro de muitas corridas hilárias com taxistas. Uma vez ia a família toda num táxi grande. O motorista “se amostrava” bastante e Seu Nilo começou a elogiar: “Mas o cara dirige muito! É um Pintacuda!” E aí é que o motorista se amostrava mesmo. (Carlo Pintacuda era o Lewis Hamilton do tempo dele.) Ele tinha seus taxistas preferidos no ponto de táxis que ficava em frente ao Café São Braz, no tempo em que a rua Cardoso Vieira era aberta e não existia ainda o famoso Calçadão. O motorista mais constante dele era Luizinho, um cara meio louro, rosto vermelho, cabelo meio arrepiado, muito piadista. Meu pai almoçava, botava o paletó, pegava o telefone, ligava para o ponto de táxi e dizia apenas: “Vem me buscar”. Eu dava tratos à bola para entender como o motorista adivinhava que era ele. (Isso foi no tempo em que eu conheci a expressão “dar tratos à bola”.) Outra mania que ele tinha era atender o telefone dizendo: “Alô Zanfan Delapatrí.” E às vezes quando a pessoa do outro lado dizia: “Quem está falando, por favor?”, ele dizia: “O Conde de Monte Cristo”, e as pessoas invariavelmente desligavam.
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Um ritual que tinha lá em casa de tantos em tantos meses era a limpeza da máquina de escrever, uma Olivetti Lexicon 80 cinza onde aprendi a batucar com dois dedos até evoluir para os três de atualmente. Quando os tipos da máquina estavam cheios de microfibras da fita embebida em tinta, e quando a película oleosa e graxenta que lubrificava as engrenagens estava toda aderida por grãos de poeira, fuligem e outros micro-detritos, havia o Domingo de Irapuã. Era o técnico (trabalhava na UFPB) que vinha limpar a máquina, mediante um cachê razoável. Era um cara tranquilo, metódico. Chegava lá em casa sempre numa manhã de domingo, fazia estender uma lona no centro da sala, sentava-se ali com sua maleta de instrumentos e desmontava a máquina inteira, pecinha por pecinha, limpava com álcool, etc., depois a recompunha, conversando com Seu Nilo o tempo todo. Quando terminava, reunia tudo, a máquina voltava reluzente e fragrante à sua mesinha, ele lavava as mãos e sentávamos todos à mesa, onde era de praxe haver um gigantesco cozido com pirão à nossa espera.
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Por volta de 1965 comecei a trabalhar no Diário da Borborema no horário da tarde, convidado pelo meu mestre Josusmá Viana. Eu fazia pequenos mandados e, como era fluente na redação, copidescava os textos às vezes meio truncados de repórteres que tinham três vezes a minha idade, eram feras na investigação mas claudicantes na retórica. Retórica sempre foi comigo mesmo. Meu salário era 15 cruzeiros, pago em duas prestações quinzenais de 7,50. Quando recebi essa primeira fortuna fiquei zonzo. Como diria um amigo meu, muitos anos mais tarde: “Rapaz, eu ganhei tanto dinheiro que abri conta em dois Bancos, porque um só não ia dar vencimento”. O que fiz? Fui direto para a banca de revistas de Henrique (que a essa altura não era mais uma banca na calçada, era uma lojinha a três portas de distância do Café São Braz) e perguntei o preço de uma montanha de revistas amarradas que ocupava uma parede inteira, até quase o teto. Era uma coleção completa de Seleções do Reader’s Digest de 1940 a 1965. Acertamos o pagamento parcelado, e todo dia quando eu saía do jornal levava um dos pacotes para casa. Serviu muitíssimo ao meu repertório de piadas de caserna, de flagrantes da vida real, de enriquecimento de vocabulário, de definições definitivas e de muitas frases de efeito que 55 anos depois jogo nas redes sociais e as pessoas dizem: “Mas que inteligência!...”
Esse tempo em que eu estudei no Alfredo Dantas (foram cinco anos ao todo) teve altos e baixos. Por isso eu ainda hoje tenho fascinação por livros de garotos-sofrendo-na-escola. Não necessariamente bullying, embora naquele tempo fosse prática normal. Livros como O Ateneu (Raul Pompéia), Doidinho (José Lins do Rêgo), Anos de Ternura (A. J. Cronin), Books vs. Cigarettes (George Orwell), A Colônia de Férias (Emmanuel Carrère) e outros. Guri abestalhado como eu sofria muito. Um dia eu fui ao quadro-negro, e na volta à carteira... cadê minha bolsa com os livros e cadernos? Comecei a procurar, quase chorando (“se eu chegar em casa sem meus livros eu levo uma surra”), a professora interrompeu a aula e me mandou olhar em todas as carteiras da classe, pra ver quem tinha tirado. Silêncio, expectativa, risadas sorrateiras. Olhei em todas, e nada. No fundo da sala, que era espaçosa, tinha um painel de madeira encostado à parede, com fotos de formandos da turma tal. Tive então o paradoxal momento mais feliz da minha vida. A bolsa estava lá (tenho uma polaróide mental). Peguei e me sentei de novo, sem dizer nada.
Falei que meu pai não dirigia; me lembro de muitas corridas hilárias com taxistas. Uma vez ia a família toda num táxi grande. O motorista “se amostrava” bastante e Seu Nilo começou a elogiar: “Mas o cara dirige muito! É um Pintacuda!” E aí é que o motorista se amostrava mesmo. (Carlo Pintacuda era o Lewis Hamilton do tempo dele.) Ele tinha seus taxistas preferidos no ponto de táxis que ficava em frente ao Café São Braz, no tempo em que a rua Cardoso Vieira era aberta e não existia ainda o famoso Calçadão. O motorista mais constante dele era Luizinho, um cara meio louro, rosto vermelho, cabelo meio arrepiado, muito piadista. Meu pai almoçava, botava o paletó, pegava o telefone, ligava para o ponto de táxi e dizia apenas: “Vem me buscar”. Eu dava tratos à bola para entender como o motorista adivinhava que era ele. (Isso foi no tempo em que eu conheci a expressão “dar tratos à bola”.) Outra mania que ele tinha era atender o telefone dizendo: “Alô Zanfan Delapatrí.” E às vezes quando a pessoa do outro lado dizia: “Quem está falando, por favor?”, ele dizia: “O Conde de Monte Cristo”, e as pessoas invariavelmente desligavam.
Um ritual que tinha lá em casa de tantos em tantos meses era a limpeza da máquina de escrever, uma Olivetti Lexicon 80 cinza onde aprendi a batucar com dois dedos até evoluir para os três de atualmente. Quando os tipos da máquina estavam cheios de microfibras da fita embebida em tinta, e quando a película oleosa e graxenta que lubrificava as engrenagens estava toda aderida por grãos de poeira, fuligem e outros micro-detritos, havia o Domingo de Irapuã. Era o técnico (trabalhava na UFPB) que vinha limpar a máquina, mediante um cachê razoável. Era um cara tranquilo, metódico. Chegava lá em casa sempre numa manhã de domingo, fazia estender uma lona no centro da sala, sentava-se ali com sua maleta de instrumentos e desmontava a máquina inteira, pecinha por pecinha, limpava com álcool, etc., depois a recompunha, conversando com Seu Nilo o tempo todo. Quando terminava, reunia tudo, a máquina voltava reluzente e fragrante à sua mesinha, ele lavava as mãos e sentávamos todos à mesa, onde era de praxe haver um gigantesco cozido com pirão à nossa espera.
Por volta de 1965 comecei a trabalhar no Diário da Borborema no horário da tarde, convidado pelo meu mestre Josusmá Viana. Eu fazia pequenos mandados e, como era fluente na redação, copidescava os textos às vezes meio truncados de repórteres que tinham três vezes a minha idade, eram feras na investigação mas claudicantes na retórica. Retórica sempre foi comigo mesmo. Meu salário era 15 cruzeiros, pago em duas prestações quinzenais de 7,50. Quando recebi essa primeira fortuna fiquei zonzo. Como diria um amigo meu, muitos anos mais tarde: “Rapaz, eu ganhei tanto dinheiro que abri conta em dois Bancos, porque um só não ia dar vencimento”. O que fiz? Fui direto para a banca de revistas de Henrique (que a essa altura não era mais uma banca na calçada, era uma lojinha a três portas de distância do Café São Braz) e perguntei o preço de uma montanha de revistas amarradas que ocupava uma parede inteira, até quase o teto. Era uma coleção completa de Seleções do Reader’s Digest de 1940 a 1965. Acertamos o pagamento parcelado, e todo dia quando eu saía do jornal levava um dos pacotes para casa. Serviu muitíssimo ao meu repertório de piadas de caserna, de flagrantes da vida real, de enriquecimento de vocabulário, de definições definitivas e de muitas frases de efeito que 55 anos depois jogo nas redes sociais e as pessoas dizem: “Mas que inteligência!...”
3 comentários:
Sou baiano, mas fiz faculdade de jornalismo em Campina Grande. Essas histórias me remetem a uma saudade boa.
mas q inteligência, filho de seu nilo. imaginei mais q todas a cena do conde de monte cristo. cada memória dessa dá uma kombi. abs, BT.
Excelentes e divertidas as recordações. Aquela numero 3 me fez lembrar do início de Madame Bovary, fazem algo semelhante com Charles.
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