Há um conto policial de Cornell Woolrich, “Uma Gota de Sangue”, publicado no Mistério Magazine de Ellery Queen (# 161, dezembro de 1962), onde o detetive se depara com um problema curioso. Ele sabe que na casa do indivíduo suspeito foi cometido um crime: o suspeito matou ali, em plena sala, uma pessoa. Foi uma morte violenta, com grande derramamento de sangue. Mas ele não pode provar.
Se ele conseguisse provar que o crime foi cometido
naquela sala, o caso estaria encerrado. Mas o suspeito, depois de se livrar do
corpo (o crime foi cometido durante a noite) passou o dia seguinte pintando o
apartamento por completo, principalmente a sala onde o crime foi cometido. Não
ficou nenhuma prova.
O detetive comenta com outra pessoas que lhe bastaria
descobrir “uma gota de sangue” para mostrar que foi ali o crime, e botar o
culpado na cadeia.
No final do conto, ele vai, pela “enésima” vez, ao
apartamento do suspeito. Examina tudo. Paredes, piso, teto. Embaixo dos móveis.
Embaixo do tapete. Nada.
Aí ele tem o famoso estalo detetivesco, sem o qual a
literatura policial não existiria. Ele lembra que, ao que tudo indica, o crime
foi cometido durante a noite – mas ele está fazendo a investigação durante o
dia. Qual é a única, minúscula, mas essencial diferença daquela
sala-durante-a-noite (o horário do crime) para a sala-durante-o-dia?
A diferença é que de noite a luz estava acesa.
E ele vai até a parede onde está o interruptor de luz,
que é daquele tipo que abaixa e levanta, ficando em ângulo com a parede. É de
dia. O interruptor está abaixado. Ele ergue o interruptor, acendendo a luz - e
vê, na parte de baixo dele, uma gota de sangue.
A literatura policial é um corpus de obras consistentemente mal interpretadas por muitos críticos
e leitores, que a veem como uma mera ilustração da “luta entre o Bem e o Mal”.
A julgar pelo que muita gente escreve, esses milhões de livros têm como única
finalidade nos convencer de que o Crime Não Compensa. (É engraçado – basta a
leitura de um jornal diário, qualquer jornal, em qualquer dia, para nos mostrar
que é o contrário.)
Histórias policiais têm uma variedade imensa de
ressonâncias simbólicas, e a que eu vejo neste conto (que entra aqui como
representante de outras centenas) é: Não
adianta destruir o que não desejamos, porque não é possível destruir tudo,
ficará uma célula que seja, e esse átomo botará tudo a perder. Mais ou menos isto.
São reflexões que me vêm incessantemente ao juízo
agoniado, tenso, atarefado, enquanto em plena Quarentena fico pra cima e pra
baixo, enchendo baldes e baldes de solução com água sanitária onde dou banho em
latas de cerveja, frascos de suco, garrafas de Coca-Cola, tudo que possa ser
energicamente esfregado com água e detergente – para exterminar O Vírus.
Pacotes de café, de açúcar. Latas de conserva.
Penso nisso ao borrifar álcool-gel-70 diariamente em cima
das mesas e lustrá-las com um perfex até deixá-las mais reluzentes do que o
espelho de Narciso. Para não deixar UM VÍRUS vivo naquele tampo de pedra, de
fórmica.
Perfex em punho, saio eu polindo maçanetas e
interruptores. Não adianta. Passo álcool gel nos braços da cadeira giratória
onde passo de 14 a 16 horas por dia. No teclado. No mouse. Não adianta. Deixo o
chaveiro (pra quê chaveiro, se meu trajeto mais longo é até a portaria do
térreo para recolher o jornal?!) de molho na água sanitária. E depois lavo as
mãos por 20 segundos – para exterminar os vírus que pudessem subsistir na água
sanitária.
Me vem à memória outro conto policial.
“As Frutas de Cera”, de Ray Bradbury, que li também no EQMM. O título original é “The Fruit at the Bottom of the Bowl” (Detective Book Magazine, Winter 1948;
recolhido depois em The Golden Apples of
the Sun, 1953).
Um sujeito visita um desafeto, que mora sozinho, numa
casa distante, meio afastada de todo movimento. Os dois discutem, e o visitante
mata o dono da casa.
Ninguém viu o crime! Ele prepara-se para fugir. Mas
lembra-se que antes da briga e do assassinato os dois conversaram longamente...
caminharam pela sala, pegaram em copos, garrafas... E as impressões digitais?!
Ele pega um pano e limpa todos os copos e garrafas. Limpa
a bandeja. Limpa os braços de madeira da poltrona. Limpa o tampo da mesa.
Lembra que foi ao banheiro. Vai lá, e esfrega tudo. Andaram pela casa, o
anfitrião exibindo objetos de arte – “segure isso... pegue aquilo...” Ele sai limpando onde quer que pudesse ter
deixado uma impressão digital.
Limpa o corrimão da escada que subiram e depois desceram.
Limpa as paredes. Limpa o lustre do teto.
O conto termina assim:
Encontraram-no às seis e meia da manhã.
No sótão.
A casa inteira estava polida e cintilante. Os
vasos brilhavam como estrelas. As cadeiras estavam lustrosas. Bronze, latão e
cobre faiscavam por toda parte. Os pisos coruscavam. Os corrimões resplendiam.
Tudo brilhava, tudo refletia as luzes, tudo
estava luminoso.
Encontraram-no no sótão, polindo os velhos
baús e as velhas molduras e as velhas cadeiras e os velhos carrinhos-de-bebê e
os brinquedos e as caixinhas de música e os vasos e os talheres e os cavalinhos
e as moedas antigas do tempo da Guerra Civil. Ele já ia na metade do sótão
quando um policial aproximou-se às suas costas, de arma em punho.
– Pronto!
Na saída da casa, ele poliu a maçaneta da
porta da frente com o lenço, e bateu a porta, triunfante.
Sigmund Freud tem a famosa teoria do “Retorno do
Reprimido”, que não perderei tempo resumindo aqui, porque o que me interessa
agora é produzir minha própria teoria, novinha em folha, que é “A
Impossibilidade de Reprimir o Retornante”.
Precisamos ter cuidado? Precisamos, sim. Lavar as mãos,
20 segundos, blá blá blá? Sem dúvida – voltei a fazê-lo, dez minutos atrás.
Perfex, gel, sanitária? Tudo. Mas temos que confiar também na escuridão, no
acaso, na incerteza. É impossível exterminar todos os vírus, é impossível
apagar todas as impressões digitais que deixamos neste planeta.
A limpeza total é tão impossível quanto a Perfeição. O
corpo humano lida com a imperfeição desde o momento em que é concebido, desde o
momento em que nasce. Nascemos por entre vírus e bactérias. Não podemos
destruí-los. O peso da massa orgânica combinada de bactérias que existe no
planeta é maior que o peso da massa orgânica dos sete bilhões de seres humanos.
Não podemos eliminar tudo, destruir tudo, limpar tudo. A Perfeição
é impossível – e é desnecessária – porque somos imperfeitos e, se a Perfeição que
imaginamos existisse, não haveria lugar para nós em seus domínios. A Perfeição é
um vírus mental, uma doença. Contra ela não temos anticorpos.
2 comentários:
Perfeito! Abração com distanciamento social - e geográfico.
Adorei!!!
Postar um comentário