Uma
definição possível (e incompleta) de arte seria: a reunião de um número
reduzido de elementos capazes de fornecer a maior quantidade possível de
informação. Um mínimo capaz de sugerir um máximo.
Lenore
Coffe, uma roteirista de Hollywood dos anos 1920-30, dizia que um escrever era
apenas colocar as palavras certas na ordem certa.
O
que me lembra a “boutade” de Glauco Mattoso ao afirmar que todas as palavras da
Ilíada e da Odisséia estavam no dicionário, só que em outra ordem.
Qualquer
tentativa de descrição do que seja uma forma de arte nos conduz nessa direção
de algo que, dos zilhões de estímulos com que o mundo nos bombardeia, escolhe
um número mínimo deles, e com isso é capaz de produzir uma ressonância muito
maior do que essa tempestade zilionária.
Isso
me vem à mente escutando uma coisa indescritível que um internauta, Antoine
Souchav, postou no YouTube.
Neste
clipe, foram reunidas e superpostas as 555 sonatas para cravo compostas por
Domenico Scarlatti. É uma massa sonora única, algo como uma avalanche onde em
vez de neve há notas muscais, um paredão gigantesco delas derramando-se
lentamente dentro dos nossos ouvidos, submergindo tudo.
É
uma experiência semelhante à que vi há algum tempo – a de superpor todos os
fotogramas de um filme gerando uma única imagem.
Uma
“redução ao absurdo” só possível por se dispor da tecnologia digital, que
simplifica, agiliza e barateia qualquer idéia maluca baseada no gigantismo
quantitativo.
Juntar
555 sonatas num bloco musical simultâneo significa anular o efeito estético de
cada uma, por completo.
Notas
musicais só podem se superpor até um determinado ponto. Imagens, idem. Pixels,
idem. Superpor esses elementos indefinidamente significa apenas produzir ruído,
entropia, indiferenciação.
É
uma experiência estética? Sem dúvida. Uma demonstração às avessas. “Agora vou
mostrar como a música deixa de existir quando é amontoada sobre si mesma.”
Não
é produção de efeito, nem produção de sentido: é potencialização de ruído, como
uma microfonia amplificada.
Experiências
semelhantes foram feitas com a obra de outros compositores. Aqui estão, por
exemplo, postagens feitas por Remo De Vico:
Os
21 noturnos para piano de Chopin, superpostos:
Os
25 Caprichos para Violino Solo, de Paganini:
O
resultado desses sons acumulados não nos dá propriamente uma experiência
estética. Seu objetivo não é o mesmo objetivo que tinha Scarlatti (ou qualquer
outro) ao compor uma peça musical.
Pode
ser uma dessas brincadeiras que tantos internautas desocupados fazem por mero
desfastio, e pode também ser uma experiência para-científica, uma tentativa de
ir até o limite sensorial de uma experiência para ver até que ponto ela mantém
seu conteúdo original, e a partir de que ponto começa a se deteriorar em
entropia.
Não
é a mesma coisa de experimentalismos que visam a produzir efeito estético, como
a do sujeito que fez um anagrama de um romance – pegou todas as palavras de um
livro (repetições inclusive) e, sem adicionar ou subtrair uma só, rearranjou
todas até compor um livro diferente.
Veja
aqui:
É
nesse momento que alguém diria, coçando a cabeça: “Mas meu ilustre, afinal de
contas, qual é o propósito dessa pirotecnia toda?”.
Eu
diria que o propósito de toda arte experimental é justamente fazer algo sem
saber no que vai dar, sem prever com clareza os resultados, e sem estar
buscando consequências. Fazer por fazer, fazer for the sake of it como dizem os ingleses.
Daí
que seja tão difícil, para o público e para uma parte da crítica, a convivência
com a arte experimental. São pessoas acostumadas a conviver com uma arte de
efeitos deliberados e de idéias esboçadas com um mínimo de clareza: a arte que
tem um objetivo, um propósito, uma mensagem, um posicionamento no mínimo de natureza
apenas estética – como têm a composição de um noturno para piano ou de um punk
rock.
Podemos
teorizar de maneira um tanto arbitrária que há dois tipos de artista: o que tem
uma idéia e em seguida parte para sua realização, e o que começa a realizar sem
saber o que vai resultar daquilo, e a idéia, quando existe, é formulada a posteriori.
É
este o caso da arte experimental, sempre levando em conta os inúmeros casos em
que a experiência não resulta em nada. O que aliás também se dá na arte mais
convencional – quantos manuscritos de romances ou poemas, depois de prontos,
não são jogados no lixo porque não resultaram em nada?
Mas
existe um caminho meio arrepiante nisso tudo. Fico imaginando um futuro em que
teremos inteligências artificiais desenvolvidas a ponto de necessitarem de
experiências estéticas: computadores que, por um motivo qualquer, precisam ler
histórias, ou ouvir música.
O
protetor de tela, por exemplo, é uma “pequena arte” desenvolvida para o bem das
telas dos nossos monitores. Para que, quando estiverem ociosos, a imagem fixa
não acabe desgastando as pequenas células luminosas.
Talvez
os computadores de próxima geração sejam tão complexos que não possam se dar o
luxo de serem desligados – precisem ficar rodando permanentemente alguns
programas, resolvendo problemas, programando efeitos...
Esses
computadores podem refinar sua apreciação estética a ponto de considerar uma
sofisticada iguaria a superposição de todas as faixas do Metallica ou a
anagramatização recursiva, recorrente, de algum clássico como Os Sertões ou A Rosa do Povo. Porque não podem parar de pensar. Porque são
inteligências artificiais e desconhecem a morte, a inconsciência.
As
possibilidades, como sempre, são infinitas.
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