domingo, 30 de junho de 2019

4480) O Bicho do Mazagão (30.6.2019)




Quem se interessa pelos monstros que povoam o nosso inconsciente coletivo deve consultar um dos livros mais importantes dessa nossa memória cultural. 

Geografia dos Mitos Brasileiros, de Luís da Câmara Cascudo, é um registro precioso de histórias de monstros, assombrações e criaturas sobrenaturais por todo o Brasil.  Inclusive transcrevendo -- o que é muito importante -- o texto dos relatos originais, muitos deles dos séculos 18, 19 etc

Aqui se fala de Lobisomem, Mula Sem Cabeça, Curupira. Fala-se também de outros mitos menos conhecidos: a Onça-Boi...a Cobra de Asas... o Arranca-Língua... o Mão-Pelada... o Pé de Garrafa...

Muitos desses bichos foram abordados na literatura de cordel. Existem no entanto outros monstros que a gente imagina que só existem em outros países, outros continentes. O Pé Grande, ou Big Foot, é um monstro que faz parte do imaginário da América do Norte mas que não é muito citado aqui no Brasil. 

O Pé Grande também é chamado Sasquatch, e é descrito como uma criatura coberta de pelos, que caminha ereta, tem cerca de 2 a 2,5 metros de altura. Ganhou o nome Pé Grande porque suas pegadas chegam a meio metro de comprimento.

Muita gente considera que Chewbacca, o famoso ajudante de Han Solo na série Star Wars, seria um Pé Grande interplanetário. 

Voltando à literatura de cordel: eu considero ser um Pé Grande a criatura descrita neste folheto de grande importância histórica: O Bicho do Mazagão, escrito por Rosil Cavalcanti, nosso grande compositor gravado por Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Marinês e muitos outros.

O folheto de Rosil foi impresso na Gráfica de Júlio Costa, e traz a data na capa: Campina Grande, maio de 1964. Talvez sua publicação tenha sido incentivada pelas celebrações do Centenário da nossa cidade, acontecido nesse ano.

Que eu saiba, é o único folheto publicado por Rosil. Um folheto de 44 páginas, em septilhas (estrofes de 7 linhas). Muito bem escrito, métrica correta, rimas perfeitas, tudo à altura das excelentes letras de músicas assinadas por Rosil Cavalcanti.

O poeta afirma, logo nas primeiras páginas:

O versejar não é fácil
como pensa muita gente;
o leitor compra o folheto
sem parecer exigente
em casa lê a história
grava tudo na memória
mas não é isso somente.

A história tem que ser
bem contada, na verdade,
pode até ser fantasia
pode ser realidade
mas não pode à criação
faltar imaginação
e nem continuidade.

O poeta às vezes falha
por uma rima forçada,
pra não perder o sentido
da idéia já pensada;
porém isso se dispensa
pois rima certa compensa
a rima desmantelada.

É uma boa reflexão, de quem já pôs a mão na massa.

Rosil refere que a história se passa nas matas do Piauí, na fronteira com o Maranhão, “na Serra da Catruzama, vizinha do Pindurão; estão ali situadas as terras do Mazagão.” 

O herói chama-se Antão, é um rapaz disposto e trabalhador que ouve falar de um bicho monstruoso capaz de estraçalhar todo um destacamento de soldados mandado à sua procura. Antão vai ouvir o depoimento do Cabo Zé, único sobrevivente do confronto, que diz:

Era um monstro terrível
de quinze palmos de altura
eu estava bem sentado
numa forquilha segura
quando vi o bicho andando
ia quse desmaiando
já mudando de figura.

Me segurei bem seguro
pra ver o bicho perfeito
era grande, feio, forte,
não caminhava direito
estava assim, adiante
tinha tudo dum gigante
descomunal e sem jeito.

(...) 

Sentindo faro dos cabras
ele foi pra gameleira
passava quebrando tudo
deixava atrás a esteira
ia babando, raivoso,
dando grunido horroroso
e com forte rosnadeira.

Aqui, acolá batia
com as mãos no corpo nu;
tinh catinga de enxofre
parecia Belzebu,
todo preto e cabeludo
cabeça grande, testudo,
e força de boi zebu.

O Cabo Zé estava trepado em cima de uma árvore e foi o único que escapou para contar a história. Antão escuta o relato, e pede uma descrição mais detalhada:

Agora diga, seu Cabo,
esse bicho como é.
Prontamente disse o Cabo:
“O bicho anda de pé
tem quinze palmos de altura
tem quse seis de largura
e dentes de jacaré.

“Os braços passam dos joelhos
as orelhas são compridas
os olhos são luminosos
as unhas muito crescidas
as mãos grandes pra danado
o nariz muito achatado
as pernas descomedidas.

“Da cabeça até os pés
ele é todo cabeludo
lustroso na luz da lua
que se parece veludo
é ronceiro no andar
barulhento no pisar
passa por cima de tudo.

“Quando rosna lá na mata
estronda toda a quebrada,
dos dois buracos da venta
sai fumaça avermelhada
andando vinha grunindo
os dentes todos rangindo
tem a cara esbranquiçada.”

Antão, resolve enfrentar o bicho sozinho, e vai direto para o local da refrega. E o poeta Rosil descreve:

Seguiu o rastro no chão
em direção ao nascente:
a marca do pé do bicho
era grande, diferente,
comprido, largo e bem cheio
de palmos, deu dois e meio
não era pé de vivente.

Não vou dar spoiler do final, até porque o confronto físico entre os dois se estende por várias páginas.

Será que o Bicho do Mazagão é o mesmo Pé Grande dos Estados Unidos? Não importa. Os dois existem na imaginação coletiva, e cada relato desse tipo traz mais uma camada de imaginação, de fantasia, de medo e de confronto com o medo... que é um medo de todos nós.













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