domingo, 9 de outubro de 2016

4168) O suspense e o spoiler (9.10.2016)




Já comentei aqui no blog (http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2011/10/2700-spoilers-29102011.html) uma pesquisa com leitores de contos em que era avaliada a reação de leitores a uma história dramática quando alguns já sabiam o desfecho do enredo, e outros não.

“Estudos comprovaram” que a apreciação de uma obra não era prejudicada pelos “spoilers”. Ao contrário. As pessoas (de um modo geral) se envolviam mais e ficavam mais satisfeitas quando eram avisadas antes da leitura, por um texto introdutório, de como a história iria acabar.

“Cada grupo recebeu versões diferentes de cada história: no primeiro, o segredo ou surpresa da história era revelado numa breve introdução antes do início; em outro, essa revelação era integrada à história original como se fizesse parte dela; um terceiro grupo recebia a história intacta. Os pesquisadores constataram que as pessoas gostavam mais das histórias cujo final era revelado por antecipação; e curiosamente isto só ocorria quando o final era revelado num parágrafo à parte, como introdução ao conto. Quando a revelação era integrada à história, não havia diferença visível no grau de apreciação.”  

(Digressão: Palavrinha chata de traduzir, essa tal de “spoiler”. O spoiler é um trecho falado ou escrito, um fragmento qualquer de informação (foto, capa de livro, etc.), que revela um segredo da história, algo que em princípio o leitor deveria ignorar até o momento; a grande revelação. Dizer como, em português? “Estraga-prazeres”, “desmancha-prazeres”? Estes termos se referem a quem faz a revelação, não ao texto onde a revelação é feita.)

Temos uma mente teleológica, uma herança por um lado da tradição greco-romana de filosofia, direito, etc., e por outro lado da visão-do-mundo judaico-cristã. Tudo converge para uma Redenção final.  O Universo pode ter começado com um ganido, mas tem que acabar num Big Bang.

Somos (o Ocidente) uma civilização linear. Nossa noção de Tempo é um vetor, uma seta orientada, encaminhando-se ao longo de uma dimensão do espaçotempo.  E temos uma espécie de obrigação moral de fazer com que tudo tenha começo, meio e fim. A mais básica definição de “história”, conto, novela, etc., inclui este aspecto. Um começo, um meio e um fim – e sempre nesta ordem. (Jean-Luc Godard sugeria usar todos três, mas misturados.)

Qual a diferença, então, entre uma história sem spoiler e com spoiler?

Quem não gosta de spoiler é porque prefere a surpresa, a incerteza, o mistério impenetrável que se resolve no fim, ao longo de duas ou três páginas. Gosta de ir até os 95% do livro mantendo vivas na mente várias hipóteses que se excluem mutuamente, até ficar sabendo qual delas prevalece. No clímax, o mistério colapsa numa solução. The End.

Quem não se preocupa muito com o spoiler não tem como prioridade saborear a resolução do mistério. Talvez goste de adentrar esse universo já pisando com os coturnos da certeza.

Ao iniciar a leitura de um romance policial sabendo que o assassino é o jardineiro da casa vizinha à da vítima, o leitor se despreocupa de tecer hipóteses sobre os outros personagens, e pode muito bem extrair um prazer de outra natureza ao ver a dissimulação do criminoso ao ser interrogado, e ao acompanhar o modo como o cerco se fecha sobre ele. Esse leitor é uma espécie de deus, que já enxerga o futuro lá de seu camarote.

Para algumas pessoas, já-saber-o-final soma uma camada de interesse a mais ao longo da leitura, que deixa de ser uma leitura em-aberto, de um texto onde qualquer coisa ainda pode acontecer. E passa a ser um texto com final visível (pelo menos nesse aspecto: “o assassino é o pai da moça”) e onde se desenrola um novo tipo de jogo. Esse leitor, mais bem informado, não se deixa manipular tanto pelo autor quanto um leitor inocente, sem-saber-ainda.

O filme A Chegada (“Arrival”) de Dennis Villeneuve (baseado num conto de Ted Chiang) imagina uma raça de alienígenas que tentam se comunicar conosco. A protagonista do conto percebe que as frases com que eles tentam se comunicar só revelam seu sentido completo quando chegam ao fim, como se só então o sentido pudesse ser visível. Como aquelas longas frases em alemão onde o verbo só é revelado no fim.

Ela compara isto ao fenômeno da refração da luz na água. Um raio de luz, ao mudar do ar para a água, de densidade bem diferente, muda de direção e acha instantaneamente o rumo que lhe será mais econômico em termos de deslocamento. Ou seja: ela encontra a distância mais curta entre os dois pontos, o ponto onde toca a água e o ponto onde chega no final.

O cálculo estava pronto?, pergunta ela. O raio de luz já sabia que ia incidir numa lâmina dágua, e já partiu num ângulo exato de tocá-la no ponto necessário, calculando uma refração que ainda não aconteceu?

É esse o tipo de visão do leitor do livro de mistério que já sabe como termina. Ele já avista o ponto onde ainda não chegou (“o assassino de todos é o juiz”), mas ele vai direto para lá. É uma leitura diferente, sabendo o verdadeiro sexo do personagem A, ou como saiu o assassino do quarto fechado B, ou quem foi o espião que ganhou uma guerra na aventura C.






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