quinta-feira, 31 de março de 2016

4090) Os 50 idiotas (1.4.2016)



As tribos antigas tinham uma coisa chamada de Conselho dos Anciãos, a quem cabia deliberar sobre as questões mais graves do interesse de todos.  Os anciãos eram os sujeitos mais velhos, mais experientes, mais cheios de recursos.  Era provável que alguns já tivessem enfrentado situações semelhantes.  Tinham – no dizer de Camões – um “saber só de experiências feito”.  O engraçado é que hoje em dia, para coisas como filmes, programas de TV ou campanhas publicitárias, não temos Conselhos de Anciãos, temos o Conselho dos Idiotas.

Os cinqüenta idiotas (era assim que Raymond Chandler os chamava) são aqueles indivíduos que os estúdios de Hollywood arregimentam para uma sessão exclusiva do filme que está quase pronto, e que as agências de publicidade contratam para examinar seus projetos. Eles exprimem a opinião média da população. São pessoas meio que pegadas na rua – o cara que vende hot-dog, o office-boy, a recepcionista, umas donas-de-casa, uns pais-de-família...   Gente sem muita informação sobre os aspectos técnicos e ideológicos de uma arte, qualquer arte. Gente que representa um segmento importantíssimo do mercado: a Maioria.

A indústria cultural vive da maioria.  É como o sistema republicano, onde não ganha o candidato mais honesto e mais capaz de administrar, ganha o candidato que tiver mais votos. Nas eleições, como não se pode saber por antecipação em quem todas as pessoas vão votar, o Ibope faz uma amostragem por região geográfica, classe social, etc., e manda seus pesquisadores.  Eles entrevistam duas mil ou três mil pessoas, e com essa pequena amostra acertam (em geral) em quem vão votar 120 milhões. 

Os estúdios de cinema fazem a mesma coisa, só que de uma maneira menos científica.  Eles escolhem “no olho” uma porção de pessoas, levam para uma cabine, dão um lanche, exibem o novo filme de Martin Scorsese ou Quentin Tarantino, e depois perguntam o que o grupo achou do filme. Ninguém os chama de idiotas, a não ser o autor de O Sono Eterno. Eles não estão ali por serem idiotas, claro, mas por serem representativos. Se o país tivesse 300 milhões de intelectuais, os estúdios escolheriam 50 intelectuais. 

O teste vale? Geralmente sim. A verdade é que essas pessoas que teoricamente nada entendem de cinema acabam entendendo de si mesmas, refletem sem complicações seu próprio gosto, seu próprio nível de entendimento. Chandler não tinha razão em chamá-los de idiotas, mas tinha razão em não querer que uma obra sua fosse submetida a esse tipo de filtro. Nem todo livro ou filme é dirigido a um público tão informe, tão indiferenciado, tão nivelado por uma média aleatória de informação e gosto.





quarta-feira, 30 de março de 2016

4089) Sete planetas (31.3.2016)



Hillyer 9. A enorme distorção gravitacional causada pela maciça estrela que o ilumina faz com que os dias nesse planeta sempre se repitam três ou quatro vezes seguidas como se fossem ecos. São variantes cada vez mais tênues, mas ainda vulneráveis à ação humana. Há sempre duas ou três chances de mudarmos de ideia e agirmos de forma diferente, e é nossa última ação que fica valendo daí em diante.

Xonquyr 10. Planeta aquático onde os únicos trechos de terra firme são na verdade os dorsos de gigantescos cetáceos que levam cerca de meio século para afundar na água e emergir de novo, o que favorece aos ilhéus nômades a construção de seus efêmeros vilarejos que nunca se repetem, de geração em geração.

Estilyon 2. O planeta revoluteia cercado por quatro sóis e é chamado pelos colonos de Vem-Ó-Noite, porque há milênios que cada polegada de sua superfície é permanentemente banhada por algum sol. Os colonos vivem em subterrâneos, onde fabricam escuridão, estrelas, penumbra; fabricam com seus próprios recursos a chuva, a  brisa, todas as seis estações do ano terrestre que guardam nas suas lendas.

Vambalag 21. Planeta minúsculo que gira sobre si mesmo com tal velocidade que as estrelas no céu são vistas como linhas luminosas, círculos permanentes que ondeiam num ir-e-vir semelhante ao das marés do oceano. Toda sua ciência se funda na tentativa de descobrir de que são feitos esses anéis. 

Mundaw 3. Pelas análises espectroscópicas o elemento predominante nele é o nióbio, que se manifesta de forma sólida, líquida, gasosa e plasmática. Sua capacidade de meta-combinação é tal que os rádio-astrônomos admitem a existência de continentes de nióbio, mares de nióbio, cidades de nióbio, animais de nióbio, vegetação de nióbio, poemas de nióbio, sonhos de nióbio, metafísica de nióbio.

Kackilin 8. Planeta mergulhado numa nuvem de matéria-escura cósmica, a tal ponto que ela flutua como poeira entre as pessoas, as casas, produzindo trechos de invisibilidade que fazem parte da percepção natural dos seus habitantes. Em Kackilin 8 às pessoas não basta olhar, elas têm que rodear esses redemoinhos de matéria invisível e tocar nas coisas.

Abercrombie 18. Pode ser considerado um planeta, apesar de ter excessivos dois anos-luz de diâmetro. Mas orbita (embora num trajeto longuíssimo, onde desde que foi criado não completou uma volta sequer) em torno de uma estrela distante, K-77. É feito de redes largas de fios de plasma, sensível às emissões eletromagnéticas. Dependendo da posição em que uma nave se aproxima, poderá estar ampliando num globo desmesurado, tipo telão cósmico, alguma emissão aleatória enviada pela TV terrestre séculos atrás.





terça-feira, 29 de março de 2016

4088) 40 anos do punk (30.3.2016)





Me lembro de uma frase de José Teles dizendo que um dia as cinematecas ainda iriam fazer retrospectivas da pornochanchada. Já aconteceu, claro. Cinemateca faz retrospectiva de qualquer coisa que, independente de sua qualidade estética, tenha produzido uma influência cultural, tenha afetado nossa maneira de ver a arte e o mundo, tenha trazido para a linha de frente idéias e conceitos que andavam meio jururus, escondidos lá na rabeira da fila.

A British Library está realizando neste mês de março uma exposição que marca os 40 anos do movimento punk na Inglaterra. O ano de 1976 foi escolhido como o do pontapé inicial do movimento, e este artigo no The Guardian (http://tinyurl.com/zalkqrj) dá um balanço no material exposto: filmes, discos, roupas, panfletos, filipetas de show, fanzines, instrumentos, clips de rádio e TV. Andy Linehan, o curador de música popular da biblioteca, explica que a instituição “sempre colecionou tanto a cultura quanto a contracultura”, e que o punk, pelo impacto que produziu nas artes e no comportamento, deixou um legado dos mais importantes.

“As pessoas veem o movimento como algo negativo e niilista,” diz Linehan, “mas o punk foi algo positivo em vários aspectos. Ele assinalou, por exemplo, o início da música independente.” A estética e a economia do DIY (“Do It Yourself”, faça você mesmo) era uma tapa na cara do sistema de produção capitalista onde é preciso ter muita grana para conseguir ganhar seu primeiro centavo. O punk, com seus discos mal produzidos, seus shows ofensivos e caóticos, suas roupas maltrapilhas, seus adereços chocantes, chutou o pau da barraca de um sistema musical milionário.  Ele surgiu numa época onde o rock perdia a rebeldia original e transbordava em efemérides babilônicas, operísticas, envolvendo megaprodução, orquestras, limusines, aviões carregados de equipamentos e tietes.

Imagino que muitos punks radicais se revoltarão contra essa “honraria”, assim como muitos poetas marginais serão capazes de fazer piquetes ofensivos diante da Academia de Letras no dia em que um ex-colega aceitar tomar posse. Acho que não importa. Quando o sistema homenageia seus próprios contestadores, certamente tem a intenção de com isto neutralizar sua virulência, ou pelo menos atenuá-la. O Sistema sempre tentará digerir e assimilar – de que outro modo sobreviveria? – tudo que o ameaça e que ele não pode simplesmente destruir. A repulsa inicial, o medo inicial, o horror inicial irão sendo pouco a pouco substituídos pela aceitação resignada do fato de que aquele animal selvagem resistiu a todas as tentativas de extermínio, e que agora faz parte do mundo como o conhecemos.









segunda-feira, 28 de março de 2016

4087) A corrupção (29.3.2016)




A corrupção é uma ruptura precedida por uma corrosão. 

É um avanço gradual onde o cara nem percebe alguma coisa acontecendo. Cada dia, avança-se um fio de cabelo. Ninguém repara. 

Jorge Luís Borges fala de um palácio onde a cada cem passos havia uma coluna; aos olhos suas cores eram idênticas, mas as colunas eram tão numerosas e as gradações tão sutis que a primeira delas era amarela e a última escarlate. Transições assim passam despercebidas, ocorrem sem sacolejos, sem catabis que chamem a atenção.


A corrupção não é uma oferta súbita de dinheiro. Dinheiro só aparece lá adiante, porque é o coroamento de um processo, é o carimbo, a rubrica, o Rubicão, o ponto de não-retorno. 

Antes disso deve ocorrer uma aproximação gradual, uma preparação de terreno. Corruptores não dão ponto sem nó, não arrombam portas, não pulam na piscina sem testar a temperatura da água, não fazem uma pergunta se não já confiarem na resposta. 

Antes dessa proposta ser insinuada (sugerida, assim como quem não quer nada, num contexto inocente, sem alusão, sem compromisso), há todo um balé de aproximações. Gestos e atenções aparentemente desprovidos de interesse. Gentilezas que plantam no agraciado um vago desejo de retribuir de alguma forma, no futuro.


A corrosão começa pela aferição meticulosa de como o indivíduo-alvo se comporta em cada tarefa da gincana diária. Avalia-se a distância entre o que ele afirma em público e o que confirma em particular. Avalia-se o modo como ele encara os próprios deveres e os direitos dos outros. Avalia-se sua atitude depois que começa a ter acesso a privilégios, tratamentos vip, atenções diferenciadas. 

Tudo isso é um enorme filtro onde muitos não se encaixam e ficam retidos, e muitos se esgueiram moralmente e vão passando, vão subindo, vão sendo admitidos à concordância muda sobre tais ou tais critérios.


Ela não se resume a um ato grosseiro de suborno, em que a pessoa-alvo é encurralada e coagida a vender a alma em troca de um saco plástico cheio de notas empacotadas. É uma lenta deterioração das defesas e dos princípios, possibilitando a impregnação final da medula.  E a vítima, muitas vezes, é quem se antecipa aos pedidos e faz ela mesma o oferecimento, na linha do “Sendo assim, que tal se...?”


O cara nunca sabe em que ponto desse processo está. Olhando em torno, as pilastras são todas da mesma cor. 

Ele não tem memória do processo porque nunca teve consciência do que acontecia. Ele pensa que está onde sempre esteve, mas a verdade é que deixou-se levar, e quando os olhos se abrem ele percebe que transpôs um limite que não era um traço nítido no chão, o limite era o próprio trajeto.



















sábado, 26 de março de 2016

4086) Gifmakers (27.3.2016)





A Internet e as redes sociais parecem, tanto em tempo de calmaria quanto de tempestade, uma agência de publicidade em momento de entressafra. Aquela sala tranquila, cheia de gente semidesocupada com o rabo do olho nas telinhas, esperando um assunto, um tema, uma deixa. Quando aparece, caem todos sobre aquilo como abutres famintos sobre um búfalo em decomposição. Não, esta metáfora é meio negativa. Digamos que os “meme makers” caem sobre um bom factóide como uma dupla de repentistas cai em cima de um mote bom. Um grupo de cartunistas, de piadistas stand-up, etc. 

Uma bobagem viraliza, independente de ser ou não bobagem. O que a viraliza é uma mecânica muito rápida que faz centenas ou milhares de palpiteiros visuais responderem, cada qual com sua respectiva panchlaine, cada um com seu aprouche. Aí começa a pipocar o comentário do comentário, e o comentário do comentário do comentário. Uma deixa é postada num mural de altíssima visibilidade às 9 da manhã de Londres, e às nove da noite em São Paulo o mundo já foi percorrido por ondas sucessivas de flashes, réplicas, tréplicas, inversões, metacomentários, recontextualizações, releituras, paródias.

Um gif é um cartum móvel. Uma coisa já corriqueira neste inesgotável Facebook em que eu (pelo menos) passo o dia enfiado, mas quem sabe um dia veremos gifs animados substituindo as fotos nos jornais de papel. Não me falem de anacronismo. Jornal de papel é como copo dágua, nada o substitui. Nada no cânone da FC nos impede de imaginar um mundo onde jornais de papel possam funcionar. Os “Vitorianos” futuristas de Neal Stephenson em The Diamond Age (1995) folheiam jornais, estudam em livros. Diferentes, claro. A tecnologia já existe, e até o nome (“smart paper”, no sentido em que dizemos “edifício inteligente”). Um certo fetiche da corporeidade sempre permanece, e teremos papel capaz de suportar pixels eletrônicos produzindo ilusão de movimento.

Gifs animados substituirão as fotos coloridas das revistas e jornais. Incrustaremos em nossos textos jornalísticos essas pequenas bolhas de espaço e de tempo, esses micro-momentos preservados num loop infindável. Na capa da revista o político estará sério mas em alguns segundos abrirá um sorriso paternal de Grande Irmão. A atriz linda estará meio de perfil em outra capa, mas quando tocarmos no papel o gif será ativado e ela voltará o rosto e os olhos para nós. Na revista de futebol o gol de placa estará rodando sem parar. Na revista de notícias reveremos em cada página a explosão do atentado, a queda do Boeing num desabrochar de chamas, o beijo dos noivos célebres, todas essas pequenas mortes que nos dão ilusão de eternidade.







sexta-feira, 25 de março de 2016

4085) Garcia Márquez na URSS (26.3.2016)





Winston Churchill disse certa vez que a URSS era “uma adivinhação embrulhada num mistério e guardada dentro de um enigma”. A URSS e a China foram as duas maiores megaexperiências sociais do século 20, numa escala ciclópica de autoritarismo, de frenesi industrializante, de exploração do trabalho, de condicionamento ideológico. Nós aqui do Ocidente podemos apenas imaginar pelos relatos (a favor e contra) que chegaram até nós. Vi neste saite (http://tinyurl.com/zkn78na) algumas impressões de Gabriel Garcia Márquez quando visitou o país dos sovietes, em 1957, e que retratam tanto o país quanto o olho humanista e esperto do jornalista e escritor.

Diz Gabo: “Parece que estamos viajando rumo a um horizonte inatingível num mundo bem peculiar, onde o tamanho de tudo excede as proporções humanas, e precisamos mudar toda a nossa percepção da normalidade para tentar entender este país. (...) O alfabeto russo tem um aspecto tal que as letras das placas parecem estar se desmanchando em pedaços, o que nos dá uma impressão de ruína. (...) Este é um povo que parece precisar desesperadamente de fazer amigos. (...)  Dá para entender a velha piada americana de que os soviéticos acham que inventaram tudo, desde o garfo até o telefone. Enquanto o mundo ocidental acelerava rumo ao progresso tecnológico, eles estavam aqui tendo que criar o básico. Se um turista em Moscou encontrar um sujeito nervoso que diz ter inventado o refrigerador, não pense que ele é maluco. É bem possível que ele tenha precisado inventar algo que já existia no Ocidente. (...) O povo russo não toma café, e encerra as refeições com chá. Eles tomam chá a qualquer hora. Os melhores hotéis de Moscou nos servem um chá chinês de tal qualidade poética, de um aroma tão sutil que a vontade que a gente tem é de derramá-lo na cabeça.
“Os soviéticos exprimem seus sentimentos da maneira mais exaltada. Demonstram sua felicidade como se estivessem dançando uma dança cossaca. Estão prontos a dar a alguém a única camisa que possuem, e quando se despedem de um amigo choram lágrimas verdadeiras. Mas tornam-se discretos e furtivos quando a conversa descamba para a política. (...)  Quem vê fotos das vitrines das lojas, todas vazias, tem dificuldade em crer que os soviéticos tenham armas nucleares. Mas a vitrine vazia confirma a veracidade desse fato. As armas nucleares, os foguetes espaciais, a agricultura mecanizada, as usinas elétricas e os esforços titânicos para transformar um deserto em terra cultivável têm como resultado o fato de que para isto o povo soviético tem usado sapatos ruins e roupas mal cosidas, e tem passado por grandes necessidades nos últimos 50 anos.”









quinta-feira, 24 de março de 2016

4084) Dona Fiorina (25.3.2016)



Posso explicar como fiquei amigo de Dona Fiorina, logo eu. Eu morava num prédio do Catete e mudei para Laranjeiras. Registrei a mudança no correio do Largo do Machado, mas, macaco velho, mandei também uma cartinha muito gentil aos próximos inquilinos do meu cafofo, pedindo que se chegasse correspondência em meu nome me ligassem no fone tal e tal. De vez em quando ela ligava avisando que chegara alguma coisa. Eu passava lá num horário combinado, tomava um cafezinho e pegava o que havia.

Dona Fiorina brilhava numa raia distante do espectro político, mas era ex-professora, culta, adorava cinema de arte. Aprendi, nesses cafés que às vezes se prolongavam à custa de biscoitos e croissants, que nosso objetivo final era o mesmo. Um Brasil justo, democrático, cheio de liberdades, de abundância... Ela erguia o dedo no ar: “Uma TV na sala, e uma no quarto de cada filho! Somos ou não somos um país democrático?!”  E olha que naquela época a gente já questionava os limites da Internet discada e a existência-ou-não da mítica Deep Web.

Dona Fiorina era uma democrata radical, em termos de liberdade de expressão. Todo brasileiro (“até os índios,” dizia ela, “porque eles não têm culpa de estarem aqui quando nós chegamos”) tinha direito de assistir o Jornal Nacional – e o Jornal do SBT. “É preciso ouvir os dois lados de cada questão,” sentenciava ela, alisando a manta sobre os joelhos. Eu perguntava pela Band, pela TV-Rio, pela TV Manchete e outros dinossauros daquela época., Ela abanava a cabeça, incrédula: “Só existem dois lados do muro. Ou a pessoa está conosco, ou está com Eles.”  E ficava coquete e irresistível, em seus 80-e-bote-força, quando piscava o olho para mim, sorrindo: “Não me pergunte de que lado do muro eu estou. Eu estou do lado da vida!!”

Vou polemizar com Dona Fiorina? Nem doido. Se brincar era mais cinéfila do que eu. Quando falávamos do futuro do Brasil ela dizia: “Eu quero um Brasil grande, um Brasil resolvido, onde todo mundo tenha o que fazer, onde o governo fique ali, servindo, contribuindo, ajudando, mas como os escravos faziam, discretos, sem se intrometer, sem atrapalhar a vida das pessoas! Um Brasil onde em toda casa exista um DVD bem moderno, como este meu, olhe mesmo, e onde todo mundo possa ver os filmes de Marcel Carné, de Jean Vigo! O senhor já pensou, “seu” Braulio, cada barraco de operário ou de favelado passando um filme de Marcel L’Herbier ou de René Clair, o bem que isto ia fazer à nossa cultura?! O quanto ia iluminar a mente dos nossos pobres favelados, dos pobres paraibanos como o senhor, que vêm tentar a vida aqui, que vêm descobrir o Mundo?!”




4083) A gíria inglesa (24.3.2016)



A gíria é uma forma de literatura. Literatura oral, claro. Palavras e expressões inventadas em voz alta no calor do momento, com empatia imediata, rápida propagação (“viralização”, diríamos hoje) e, algumas décadas depois, a consagração nos compêndios. Muitas gírias são intraduzíveis, por serem invenções sonoras, onomatopéias, neologismos absurdistas. Outras, porém, produzem imagens visuais ou descrições vívidas, incríveis. 

O saite The Art of Manliness transcreve um pequeno glossário de gírias masculinas da Inglaterra do século 19, e muitas são pequenos achados de criação verbal.

“Blind Monkeys” (macacos cegos). Expressão usada para sublinhar a incompetência de alguém, supondo a existência, num zoológico, de uma jaula de macacos cegos. “Fulano só serve mesmo pra levar os macacos cegos pra fazer cocô”. 

“Month of Sundays” (um mês de domingos). Um longo espaço de tempo, equivalente a trinta domingos. “Acho que faz um mês de domingos que eu não vou ao bar”. Em português, temos uma expressão equivalente no futebol: “Esse jogador é muito velho, só de minuto de silêncio ele já deve ter uns dez anos”.

“Perpendicular” (idem). Refeição feita em pé num restaurante popular. 

“Half Mourning” (meio luto). Um olho roxo em consequência de uma briga. Quando são os dois olhos dizia-se “whole mourning”, luto completo. 

“Earth Bath” (banho de terra). Uma sepultura. 

“Firing a gun” (atirando de pistola). Uma técnica freqüente de forçar a barra ao contar uma história, num grupo. O sujeito diz: “Escuta! Isso foi um tiro?! (silêncio atento) Bem... Por falar em tiro...”

“Smeller” (cheirante). O nariz. Muito usado no mundo do boxe: “Ele levou dois socos seguidos no cheirante.” 

“Honor bright! (honra brilhante). Expressão semelhante a “juro por Deus!”, contração de “I swear by my honor, which is bright and unsullied!”, “juro pela minha honra, que é brilhante e imaculada”. 

“Shake the elbow” (balançar o cotovelo). Jogar dados. 

“Fart catcher” (apanhador de peidos). Um criado ou criada que caminha atrás do patrão ou patroa.

“Hole in a ladder” (buraco numa escada). Diz-se, de um sujeito muito bêbado, que ele não consegue enxergar um buraco numa escada (escada de mão, da que se encosta num muro, creio eu). 

“Lay down the knife and fork” (largar o garfo e a faca). Morrer. 

“Rib” (costela). Esposa. “Tenho que ir agora, a costela está esperando.” 

“Pot Hunter” (caçador de canecos). Esportista que entra em disputas desiguais, onde todos os adversários são mais fracos e ele tem a vitória como certa, apenas para colecionar troféus. 

“Scandal water” (água de escândalo). Chá; a bebida das senhoras de idade enquanto fofocam sobre os escândalos locais.







quarta-feira, 23 de março de 2016

4082) Cinco pirados (23.3.2016)



(ilustração: Piotr Przypadek)


Marquinho Bonsai, 28 anos, percussionista da banda new age carioca Os Outros.  Foi demitido da banda porque, na hora de entrar no palco para o show de estréia da temporada no Canecão, fumou um baseado tão radical que errou a porta do camarim e em lugar de ir para o palco saiu para a rua, pegou um táxi e foi para o Baixo Leblon, onde comeu cinco lasanhas verdes.  Os companheiros de banda o demitiram, não por isso, mas por considerá-lo dispensável, pelo simples fato de terem conseguido fazer o show inteiro sem dar pela sua falta.

Ahmed ul-Tahili, topógrafo marroquino, 46 anos. Dedicou sua vida a uma coleção de milhares de peixinhos tropicais nos quais implantava chips transmissores de sinais codificados. Cada vez que dois deles (nos imensos tanques mantidos num galpão de sua fazenda) se cruzavam a uma distância mínima pré-fixada, um pulso era captado por um computador central, que selecionava uma palavra e a adicionava ao imenso poema com que ul-Tahili pretendia concorrer ao Prêmio Nobel, para o qual chegou a ser indicado três vezes.

Henri Derouard, poeta decadentista francês (1833-1902). Durante décadas, sua vida consistiu em beber vinho, fumar ópio e escrever um volumoso diário íntimo onde documentou exaustivamente sua época. Nele, dedicou milhares de páginas a suas aventuras e fantasias eróticas, e ao seu relacionamento com pessoas do seu círculo literário, que incluía de Charles Baudelaire a Stéphane Mallarmé.  Em seu leito de morte, pediu ao sobrinho (que era também seu secretário particular e confidente) que queimasse tudo – e o idiota obedeceu.

Adam Altamont, texano, herdou e vendeu a indústria de pré-moldados do pai, e dedicou-se a mapear alfabeticamente ao EUA, entrevistando em Austin a dona de casa Alberta Allen, depois em Boston o pastor Bernard Bachman, em Chanute o garoto Clive Cornhill, em Detroit o policial David Donahue, em Evansville a florista Esther Edison. Indo em sua camionete rumo a Fort Worth para entrevistar o ator Frank Fullerton, colidiu de frente com a picape dirigida pelo aposentado míope de origem polonesa Zbigniew Zebrinski.

Casimiro López, 44 anos, mexicano, decidiu inventar um motor de automóvel que não precisasse de gasolina. Ao longo de 25 anos, experimentou suco de laranja, água com gás, querosene, água de coco, café, chás variados, vodka, tinta a óleo, leite de cabra, vinho tinto. Comparando dados, percebeu que uma mistura de todos esses ingredientes era o composto ideal: barato, eficiente e abundante. Quando comparava percentagens buscando a proporção ideal de cada um, foi vitimado por uma explosão que sua viúva até hoje atribui à maquinação dos gigantes petrolíferos.





terça-feira, 22 de março de 2016

4081) Tragédias e vinganças (22.3.2016)



Uma vez, entre amigos, alguém contou uma história terrível a respeito dos seus antepassados. Não era ninguém famoso, nenhum fato “exarado nas efemérides”, como diria Guimarães Rosa, mas ao que parece havia cavernas ocultas na história da família dele, e o que ele nos ofereceu só fez aumentar a nossa ânsia por mais. Sem entrar no mérito das paixões e dos parâmetros da época, deixemos que a História se conte a si mesma. Que as histórias guardadas sejam trazidas à luz, desempoeiradas, e postas a funcionar diante de todo mundo. Nada faz mais a festa nossa do que a vida alheia, principalmente quando essa vida dá uma bela história para contar depois, para quem é como eu, daquele tipo que tudo recorda.

Era uma história que envolvia violência e vingança entre famílias que se tinham em alto conceito, aquelas famílias de sobrenome imponente e impoluto, que consideram sua própria história uma mitologia, uma religião. Mortes daqui, mortes dali. A vida real é um filme terrível, do qual não se acorda nunca. A cruz da história é uma decisão que o personagem toma, entre a catástrofe A ou a catástrofe B. A gente sempre sai do cinema achando que a melhor solução teria sido a outra, tal é o poder da catarse trágica de um filme. Mas não adianta. Filmes de tragédia, mesmo os de final acautelatório, precisam confirmar que a catástrofe já acabou, já foi concluída, registrada, analisada, conceituada, ressignificada. O filme acaba, e estamos agora em boas mãos.

O que acontece (disse aquele amigo nosso) é que ele agora se via num dilema com que Shakespeare não sonhou. Estava a ponto de assinar um contrato de sociedade de não sei quantos dígitos, numa situação jurídico-financeira onde (segundo ele próprio) era preciso existir confiança cega e absoluta entre ambas as partes, porque se uma delas quisesse poderia afundar a outra com um mero documento. E a outra parte pertencia à família envolvida na bendita tragédia-familiar citada acima. Ele erguia olhos insones e dizia: “Como posso confiar nessas pessoas?!”.

Pois é, nem Shakespeare seria cruel a esse ponto. Deu-nos apenas a versão “diet”, envolvendo Montecchios, Capuletos e um casalzinho de jovens rebeldes.  Inimizades históricas (entre famílias; entre povos; entre vizinhos) não são algo que possa ser varrido do mapa por um decreto. Decretos não detergem manchas de sangue, quando houve sangue. O que meu amigo me perguntava, era, de certo modo: “Como posso saber se em pleno voo eles não cederão ao impulso atávico de destruir os meus? Como posso saber se eu mesmo resistirei ao impulso, à tentação, à missão, ao dever, ao prazer silencioso de destruir um deles?”.





sábado, 19 de março de 2016

4080) A arte de recitar (20.3.2016)




(Dante Gabriel Rossetti: Mnemosyne, a deusa da memória)


Algum tempo atrás, numa festa de cantadores em São José do Egito, subi ao palco para recitar uns versinhos. Macaco velho que sou, tinha no bolso um dos meus cordéis, pra não me perder. Mal o puxei do bolso, vi a platéia se desinflar da própria expectativa. 

O Vale do Pajeú não é apenas um lugar onde se venera a deusa Poesia. Venera-se igualmente a deusa Memória, as duas uma ao lado da outra, em dois altares igualmente enfeitados de fitas, ex-votos e velas. Ali, não basta saber fazer versos; não basta entender o que é um verso bem feito; não basta ter o tutano e a medula necessários para subir num palco e enfrentar o Monstro de Mil Rostos. Tudo isso não é nada quando o cara escreve um poema e sobe para declamá-lo com um ridículo papel na mão. Com uma “cola” na mão, na frente de todo mundo.

O camarada que precisa ler um poema é porque não gravou o poema em si mesmo, não fez do poema uma parte de si, ao preço de minutos ou horas de um ritual mnemônico que não está muito distante da prece religiosa. 

Por outro lado, essa peculiar dramaturgia pajeuzeira mostra o quanto está verde e viçoso o ramo da oralidade entre nós. Os recitadores são às vezes jovens, rápidos, precisos, verdadeiras metralhadoras, de carga inesgotável e transbordante. Outras vezes são anciãos compassados capazes de falar lentamente, sem nunca alterar o passo, seja rememorando, seja reproduzindo o verso, e dali passar por associação de idéias para outro parecido, e deste para um terceiro porque tocou no nome de Fulano, e daí brota mais um episódio semelhante... e as horas se passam e aquela fita não para de rodar.

A memória da gente, eita oceano profundo. Mas é um oceano generoso, porque se você tiver cuidado você vai ver que tudo que esse oceano engole ele devolve inteiro, depende só de você. E às vezes você já está tomando umas e outras há umas dez ou doze horas, o bar está meio fora de foco, mas alguém pede pra você dizer aquele verso de Fulano. Você vira um gole e procura no oceano de dentro de si. Como danado é esse verso? Começa como?... 

E de pouquinho, daquelas águas escuras e profundas, daquela nossa cisterna cheia de ecos, começa a brotar um pedaço, um cotoco de verso aqui, um frangalho de rima ali, uma redondilha rasgada acolá, e outras palavras vêm surgindo luminosas, dão um pequeno pulinho ao chegar à superfície, ficam boiando ali, e como por um milagre da matéria essas palavras vão se alinhando, ganhando forma e sentido, como se tivessem vindo todas soltas e misturadas mas com a ordem de se recompor quando chegassem à tona, e você cofia o rosto grisalho ou imberbe, ergue o indicador e começa a recitar.




4079) Querer sempre o melhor (19.3.2016)



Esta expressão vive na moda, e nunca deixa de me irritar um pouco. Pessoas dizem: “Ah, eu exijo sempre o melhor.” À primeira vista, parece birra minha com quem é muito rico. Pela lógica vigente, o melhor é sempre o mais caro. Se o vinho A custa 30 reais e o vinho B custa 40, B é melhor do que A. Um carro que custa 100 mil reais, então, é necessariamente melhor do que um carro que custa 50 mil, e se o seu carro custou 50 você deveria se esforçar mais, trabalhar mais, produzir mais, ganhar mais, para poder ter o que realmente importa, o carro de 100 mil. (Depois vai entrar em cena o carro de 200 mil, e tudo recomeça. É uma extorsão fractal expansiva.)

A neurose consumista é sem cura. Quando a conversa chega aí, eu me faço de doido e mudo de assunto. Mas o mesmo sintoma reaparece quando alguém me pede dicas de leitura. Quem pede dica de leitura muitas vezes o faz porque tem pouco tempo para ler, quer ir direto ao filé. Eu vivo cercado por pessoas que trabalham mais do que eu, trabalham 10, 12, 14 horas por dia. (Eu também; mas metade desse tempo é lendo. Não sei se devo considerar minha leitura como trabalho, até porque tenho prazer nela, e diz o catecismo puritano que trabalho que dá prazer não é trabalho e não deveria ser remunerado.)

“BT, eu não conheço muito a literatura policial. Quem é o melhor autor policial?” Eu respondo: “Bem, você poderia ler Raymond Chandler. Ou Ruth Rendell. Ou Cornell Woolrich.” Mas aí a pessoa diz: “Mas quem é o melhor de todos?” Eu respondo: “Olha, em literatura não existe isso de ‘o melhor’. Tudo é muito subjetivo.”  E aí vem a frase definitiva, que já ouvi tantas vezes: “Ah, sinto muito, eu não tenho tempo pra ficar testando. Quero conhecer o melhor. Se não sabem quem é o melhor, não pode prestar”.

A pessoa que “quer somente o melhor de algo” não está interessada nesse algo. Você só conhece algo de verdade se experimentar o melhor, o bom, o médio, o ruim e o pior que existe naquele âmbito. É uma espécie de lei da vida. Imagine alguém que quisesse entender de futebol mas não tivesse paciência de assistir os 90 minutos de um jogo, quisesse ver apenas os “melhores momentos” – e depois saísse cagando regra sobre o que foi aquela partida, e sobre o futebol em si. Para conhecer FC, por exemplo, não basta ler os melhores (LeGuin, Dick, Gibson, Clarke, Lem, Ballard...). É preciso ler algumas centenas de romances e de contos de todos os tipos, em todo o espectro de qualidade literária possível. Só se conhece algo quando se conhece esse algo em todas as direções, em toda a variedade de sua experiência, uma experiência que o “melhor” nunca consegue abarcar sozinho.





quinta-feira, 17 de março de 2016

4078) O crime de Raskólnikov (18.3.2016)



Numa entrevista ao Brasil de Fato, o paraibano Paulo Bezerra, um dos nossos principais tradutores do russo, foi perguntado sobre o melhor livro para iniciar a leitura de Dostoiévski.  Ele respondeu: “Sempre sugiro Crime e Castigo, que tem como personagem central Raskólnikov, um jovem excluído que pensa como jovem, filosofa como jovem, e como jovem tem um amor verdadeiro pela vida, pelo ser humano (especialmente as crianças) e acaba amando Sônia de verdade.”

Ora, Raskólnikov ficou para muita gente como símbolo do assassino frio e cruel que, depois de praticado o crime, começa a se roer de remorsos. (O “castigo” do título é o tormento mental do personagem; o desfecho jurídico se dá apenas nas 20 últimas páginas.) Paulo Bezerra está descrevendo apenas o lado bom de Raskólnikov, um jovem brilhante e arrogante que foi atraído pelo lado negro da Força. Ou seja: pela húbris, pela crença de que é superior aos demais, pela crença de que a satisfação de um desejo seu é mais importante do que a vida de alguém.

A raiz das ações dele está no artigo “A respeito do crime” que Raskólnikov publicara, meses antes, num jornal. Nele, o rapaz explica que há dois tipos de indivíduos, os ordinários e os extraordinários; e que estes últimos têm direitos morais mais amplos do que os primeiros. Isso não significa (diz ele) que Isaac Newton, um extraordinário, tivesse o direito de sair matando ou roubando qualquer um que encontrasse na rua.  Mas Newton, tendo feito descobertas cruciais que trariam um enorme benefício à humanidade, se visse essas descobertas sendo bloqueadas ou impedidas por “um, dez, cem ou mais homens”, teria todo o direito de eliminar esses homens, para levar sua descoberta a toda a humanidade.

Dostoiévski incrusta essa teoria, no romance, através de um artigo publicado pelo personagem. Raskólnikov na verdade não sabia que o artigo (enviado para um jornal que acabou falindo) tinha sido publicado. Só depois do crime alguém o avisa de que essa justificação teórica tinha sido dada a público. Raskólnikov, assim, trai a si mesmo, chama atenção da polícia sobre si mesmo, como se o “demônio da perversidade”, de Edgar Allan Poe, tivesse baixado sobre ele.

Esse mesmo efeito de imprevisto se dá na cena do crime. Ele entra, mata a velha usurária que guardava jóias e dinheiro em casa, mas esquece a porta aberta ao entrar. A irmã da velha entra, vê tudo, e ele a mata. Não importa se o primeiro crime era filosoficamente justificável. No segundo, prevaleceu apenas a necessidade fatal de não deixar testemunhas. O crime se ampliou, como sempre se amplia, numa direção que ele jamais imaginara.



4077) Grandes Objetos Mudos (17.3.2016)



(Rama, de Arthur C. Clarke)

Peter Nicholls, crítico australiano que viveu no Reino Unidos por dezoito anos, é um dos editores de The Encyclopedia of Science Fiction, uma das obras de referência essenciais sobre FC (http://www.sf-encyclopedia.com/).  Na segunda edição da obra (1993) Nicholls, autor de grande parte dos verbetes temáticos, sugeriu como um dos temas notáveis da FC aquilo que ele chamou de Grandes Objetos Mudos, “Big Dumb Objects”. Em inglês há uma sutileza maior porque “dumb” tanto pode ser “mudo” como “estúpido”. São aquelas construções gigantescas que a Humanidade vai encontrando ao percorrer a galáxia.  Voltamos a lembrar deles há poucos meses, quando a astronomia constatou uma estrela que parecia ter sua luz periodicamente eclipsada, em parte, por algo que, visto assim, poderia ser uma gigantesca estrutura artificial em volta da estrela, como uma grade, imóvel ou não.

Vieram aos jornais Grandes Objetos Mudos como o Ringworld de Larry Niven (um anel-de-saturno artificial abrigando um mundo inteiro), a Orbitville de Bob Shaw (o mesmo conceito, só que em vez de um anel era uma esfera oca, tendo a estrela ao centro), e outros. É algo típico de uma FC “hard” como a de Arthur C. Clarke, Gregory Benford, Greg Bear, John Varley e outros autores capazes de descrever um mundo assim de modo acreditável. O termo preferido pelos críticos é “Macroestrutura”, até porque alguns desses grandes objetos artificiais não são nem mudos bem bobos (http://www.sf-encyclopedia.com/entry/macrostructures).

Nicholls vê nisso um resíduo poderoso do elemento Romântico (no sentido literário) numa literatura que, pela força da verossimilhança científica, tende a ir justamente para o lado oposto, o do Classicismo. Naquelas obras, a humanidade descobre maquinismos gigantescos que ela em geral não sabe para que servem nem como podem ser postos a funcionar. Em geral a aventura se encerra sem que esse mistério maior tenha sido respondido.

Para o crítico, isso revela um lado lunar, sombrio, misterioso da FC. Em princípio se pensa no gênero como apenas uma literatura triunfalista, racional, impecavelmente exata e escrupulosamente realista. Nicholls lembra que Brian Aldiss (Billion Year Spree, 1973) já lançava essa premissa, situando o começo da FC em 1818 com o Frankenstein de Mary Shelley, e dizendo que era uma literatura caracteristicamente moldada numa chave gótica ou pós-gótica. E Nicholls pergunta: “O que é mais gótico do que o movimento Romântico, que sempre se focou mais no mistério do que no conhecimento?”.  O Grande Objeto Mudo nos diz existir uma ciência que transcende a nossa, e nos avisa que jamais conseguiremos acessá-la.



terça-feira, 15 de março de 2016

4076) O passeio de Joãozinho (16.3.2016)



É uma rotina antiga, confortável. Como toda rotina, é uma tentativa de volta a um passado onde tudo correu bem. Quando D. Helena pega Joãozinho e desce pelo elevador de serviço, ao lusco-fusco do entardecer, todos os dias, religiosamente, ela, aos 72 anos, está fazendo na verdade uma viagem no Tempo. Na cabeça dela, descer para o passeio diário de Joãozinho não é apenas uma ida até a pracinha, é uma visita ao dia de ontem. O que ela espera é voltar ao dia de ontem, a tudo que ontem ocorreu de confortável, de reconfortante, o diálogo com as empregadas domésticas e as babás, com os donos de pets, com o pessoal de short e tênis acenando um boa-noite arquejante nas subidas e descidas do quarteirão. Ela quer voltar às coisas boas do dia de ontem, quer que aquilo-bom que já aconteceu venha e aconteça  de novo, com alguma variante ou interferência, tanto faz, desde que o dia-de-ontem-revisitado-hoje seja tão pacífico, pacato, cordeiro, manso, quanto o dia de ontem original.

Ela vai portanto à área de serviço, onde Joãozinho já a espera, olhos brilhantes, cheio de expectativa. Recolhe os jornais sujos que forram o chão, espalha jornais limpos, troca a água. Prende a correntinha à coleira e Joãozinho já se agita feliz. Em momentos assim ela lembra às vezes o dia em que o conheceu e o escolheu, no meio de tantos outros, todos tão abandonadinhos, todos tão carentes. Acompanhada por dois funcionários ela se debruçou na mureta, ficou olhando aquelas criaturinhas, coitadas, tão sem ninguém. E viu os olhinhos pretos dele fitos no dela, e exclamou: “Aquele! Vai ser aquele ali! Olha como ele me olha! Parece até que está me reconhecendo!”  Foram poucos dias de assinatura de documentos, exames médicos, termos de responsabilidade, e Joãozinho veio e se instalou no centro da vida dela. Como um pequenino imperador, alguém que foi feito só para dar amor, dar gratidão.

Ela caminha pela calçada, mantém corrente curta para Joãozinho não se chegar demais ao meio fio, não atrapalhar a passagem dos transeuntes. Ele tem algumas vitrinas favoritas onde se detém fascinado vendo aquelas cores e luzes que decerto não compreende. Ela segue até a praça, onde há um vasto quadrilátero cercado onde ele pode ser solto, correr um pouco, brincar com os outros, enquanto os donos se cumprimentam, conversam amenidades, trocam conselhos sobre alimentação, remédios antipiolhos e tudo o mais. Hora de voltar, Joãozinho! As primeiras estrelas já brilham no céu. Ele volta, meio relutante, meio satisfeito, mas essa meia-horinha é tão importante para o coitado, olha só a felicidade nos olhos dele, parece gente.




segunda-feira, 14 de março de 2016

4075) A infância e a FC (15.3.2016)



(ilustração: Flights of Fancy, de James Gurney)

A New York Review of Science Fiction (May 2010,  # 261) publicou uma espécie de enquete feita por Barbara Bengels com alguns escritores de FC norte-americanos para avaliar que tipo de incentivo, inspiração ou iniciação eles receberam quando garotos, algo que de certa forma os encaminhou para a literatura e/ou a FC. 

Bem, se eu me perguntasse qual seria a resposta “típica” dos autores dos EUA que eu leio, que acompanho, já li a respeito, etc., eu diria que são meninos e meninas filhos de profissionais liberais não muito ricos, mas vivendo com conforto, e criando em volta dos filhos uma nuvem informal de livros, músicas, desenhos, filmes, estimulando sua imaginação; e ao mesmo tempo fazendo-o estudar sério, mesmo que rebocando-o pela orelha. 

O típico escritor de FC leu muito. Um escritor de FC é um cara capaz de considerar a possibilidade de um dragão, de explicar reator nuclear, de consertar um rádio, de achar uma constelação no céu e de explicar o mito que nela se projetou.

Não; cada caso é um caso. Theodore Sturgeon (More Than Human) diz que tinha uma relação conflituosa com o padrasto, que não o deixava ler pulp magazines. Ele guardava tudo num armário grande, e lia às escondidas. Um dia o padrasto achou a coleção de revistas de FC e rasgou tudo. Nesse instante, Sturgeon decidiu que tornar-se escritor de FC seria a vingança mais completa.

Melodrama, mas a FC de Sturgeon é puro melodrama, é o desvio da média, a exacerbação meio caricatural disto às expensas daquilo. Cada jogo de baralho inventa sua regra, e na literatura é assim também. 

Situações assim são frequentes na vida real, mas dificilmente serão o mais mediano ou o mais típico. Para muita gente a pulp fiction foi uma iniciação pecaminosa. Acho legal um autor épico dizer que um dia uma revista de FC entrou na casa dos pais dele, ele leu duas histórias que “scared the daylights out of me”, e o casal Saberhagen proibiu o pequeno Fred (Berserker) de voltar a fazer tais leituras.

Não tem como não admirar a singeleza cowboy com que o veterano Jack Williamson (Legião do Espaço) conta seu estalo-de-Vieira. Com 5 ou 6 anos ele ouviu dizer que Mark Twain ganhava um dólar por palavra. Saiu perguntando se isso valia também para palavras bem curtinhas como “to” e “the”, e quando lhe disseram que sim ele decidiu ser escritor. 

Joanna Russ (The Female Man) talvez seja mais mediana pelo meu critério acima. O pai era professor de artes industriais e construiu um telescópio para ele e ela olharem as estrelas. A mãe era professora, lia muito, e comprava antologias de FC e de horror, que ela leu e aprendeu a gostar.  Começo mais plácido não poderia haver.





sábado, 12 de março de 2016

4074) Memes e gifs (13.3.2016)



Um que está se multiplicando é o Gif do Falso Desfecho. Alguém posta uma imagem de um lenhador dando as últimas machadadas num tronco gigantesco a ponto de aluir. Ficamos esperando a queda da árvore, guiados por uma frase-isca, “o desfecho é sensacional!” ou “não entendi esse final”, ou “só percebe se prestar muita atenção”.  Mas não, as machadadas (a ação preparatória) ficam rodando em loop e a piada é com a gente.  Quer mais filosofia prática do que isso?

Os gifs são álbuns de figurinhas de fãs: o carrinho percorrendo os corredores do Overlook Hotel em “O Iluminado”, a valsa das espaçonaves em “2001”, uma briga-relâmpago de espadas num épico japonês. Mais interessantes e mais difíceis de capturar são aqueles com alguns segundos de um riso, uma expressão no olhar, um gesto eloquente de um ator. Ou uma pequena simetria de movimentos que, ladrilhada ao longo dos segundos, pode produzir efeitos de humor ou musicais ou emotivos. Algo real, que poucas pessoas lembram, mas está ali.  Uma contração nos lábios de Audrey, uma sacudida-de-ombros de Jardel Filho, um olhar de esguelha de Shelley Winters, uma palitada-de-dentes de Wilson Grey.

Quem capta essas coisas já as tinha na memória, e foi rever o filme à sua procura? Ou estava meramente vendo o filme e aquela pérola repentina cintilou na tela, e ele decidiu recortá-la para si? Meu reino por algum software tipo “Gifmaker”. Você está assistindo um filme no DVD da sala, ou no do notebook, aí gosta de um trechinho, para, volta, vem acompanhando até chegar a cena que você quer. Aí aperta um botão no controle remoto, uma vez para começar gif, duas para encerrar. Fica uma cópia no aparelho e outra vai na mesma hora para seu celular.

Gifs viralizam primeiro quando são compartilhados, repetidos, quantificados. E depois quando começam a ser interferidos ou (para usar um termo da moda) ressignificados. Um meme recente como o de John Travolta, casaco sobre o braço, hesitante, fazendo um gesto vago de “sim, mas cadê?” vira um comentário beckettiano capaz de ser aposto a qualquer situação humana. Buster Keaton perseguido por pedras rolantes numa encosta, uma menininha loura jogando dólares pela janela, Shirley Temple fumando o cachimbo da paz, um homem subindo incansavelmente uma escada que não para se se alongar... 

São gestos congelados no âmbar da imagem, são cartuns animados sem legendas. Uma linguagem que já existia: seguramente os editores de revistas de cem anos atrás já imaginavam a possibilidade de substituir a foto costumeira por uma breve sequência de uma ação animada, em ritornelo constante, ativada no abrir da página.




sexta-feira, 11 de março de 2016

4073) Andrei e Kalina (12.3.2016)



(ilustração: Marc Chagall)

Os dois dizem ser russos de nascimento (Ele: “Minha infância foi em preto e branco. Descobri a cor quando vi o mar, com quatro anos.”), emigrados na infância (Ela: “Eu não lembro de nada, amorrr, me trouxeram vendidona, passiva, quando eu soube que existia já era brasileira”). Só vieram a se conhecer no Brasil, já brasileiros e cariocas ambos, numa festa da faculdade, onde se esbarraram (Ele: “Alguém esbarrou em mim e minha bebida derramou na roupa dela, e quando percebi estava tirando a roupa dela para que ela não pegasse um resfriado”), se apresentaram, se maravilharam um com o outro, se envolveram e não se largaram mais. (Ela: “O segredo de segurar um marido, amorrr, é um só em qualquer idioma.”) 

O pai de Andrei era engenheiro aéreo e ganhava um belo salário, além de uma nota preta com umas geringonças que ele e uns colegas inventaram. (Ele: “BT, grava o que eu tou te falando: Enquanto eu estiver no trono, o reino é de vocês. Não esqueça isso, e me cobre.”) A família de Kalina se estabeleceu no Nordeste, somente os pais dela que preferiram o Rio. (Ela: “Eles gostaram dessa sacanagem daqui, meu amorrr, eles gostaram de viver num lugar onde não se batalhava meses para chegar aos finalmentes, cê entende?”). Andrei era um cara enorme, terno, emotivo, mas podia ficar violento de um segundo para outro. (Ele: “O cara da mesa ao lado foi grosso com o garçom. Eu não pretendia dar aquele prejuízo ao dono do restaurante”). Os dois eram meio infiéis um ao outro, discutiam em altas vozes e meia hora depois estavam aos beijos (Ela: “A mulher tem que ter pose de rainha, inclusive quando está amassando os culhões de um sujeitinho que não presta, como esse meu, que nunca vai prestar, só se salva porque eu o amo.”).

Julian Jaynes, neurologista famoso, afirmava que os dois povos com maior tendência paranormal no mundo são os russos e os brasileiros, por motivos que ninguém sabe explicar (Ele: “Quando eu era menino era capaz de descrever um lugar apenas tocando com a ponta do dedo no nome dele num mapa”). Talvez isso tenha influído no encontro e no casamento deles dois. (Ela: “Encontro não, amorr, eu e ele estamos nos reencontrando depois de mil anos, porisso esse frisson, essa loucura”) Talvez todo caso de amor bem sucedido (são mais do que se imagina, e menos do que seria justo) possua (além dos elementos habituais de sexo, carinho, simpatia, gostos em comum) um pouco de paranormalidade, de metempsicose e vidas passadas, de telepatia, de clarividência, alguma Faculdade X que dormita em nossa mente e que é ativada pela presença daquela pessoa tão mais improvável entre todas, ou tão gritantemente inevitável e única.






quinta-feira, 10 de março de 2016

4072) Minhas leituras (11.3.2016)



(ilustração: Félix Vallotton)


Vejam o lado ruim e o lado bom de ter uma coluna num jornal. As pessoas publicam numa rede social (tipo Facebook) posts falando de literatura, música, cinema, etc. Publicam na rede e são lidos por milhares, dezenas de milhares, seja lá quanto cada um tenha. (Não se sabe: são números tão pouco confiáveis quanto os dos famosos livros numerados, dos famosos CDs numerados; nunca se saberá quantos foram feitos.) Já um sujeito que tem coluna no jornal se dirige de outro modo a esses seus leitores de ponto-de-ônibus.

Digressão: existe um Arquétipo do Inconsciente Jornalístico segundo o qual todo artigo de jornal é lido num ponto-de-ônibus, sob sol escaldante ou chuva torrencial, e tem que ser lido até o fim para pagar a tinta e o papel que o tornaram legível. Um livro é lido numa sala à meia-luz, com música suave ao fundo, um vinho, um momento-gurmê qualquer. O artigo de jornal tem que brigar com a fila do banco, a espera do busão, a contagem regressiva no dentista. Tem que se sobrepor a tudo isto.

Então, vamos, em primeira mão. (Depois do jornal vai para o blog, depois vai para as redes sociais.)

1) “Autores que nunca li”: Leon Tolstoi, William Faulkner, André Malraux, Homero, Virgílio, Ovídio, Dante... A lista é heterogênea, mas lembro de muitas ocasiões em que pairava uma sensação de “ou lê Fulano ou não merece conversar com a gente”. 

2) “Não sinto vontade de ler”: Eu tenho umas birras literárias do tipo “jamais lerei Fulano”, mas são birras, podem ser juridicamente pisoteadas de acordo com minhas venetas. Posso ler qualquer autor; prioridades são outra coisa.

3) “Não conheço ninguém que tenha lido, mas eu amo”: eu poderia falar no poeta-cientista Miroslav Holub, mas quem mo trouxe foi mestre Régis Frota. Digamos então R. A. Lafferty, que nem o pessoal da FC conhece direito. 

4) “Último que li”: Good Omens (Terry Pratchett e Neil Gaiman). A saga do Anticristo como se fosse escrita por Douglas Adams e filmada pelo Monty Python.

5) “Leria tudo de novo”. Espero ainda reler por inteiro cada história que já li de Guimarães Rosa. 

6) “Autores que tocaram meu coração”: gente que me emociona até hoje, mas nunca entrou no cânone literário: A. J. Cronin (Anos de Ternura, A Cidadela), Giovanni Guareschi (as histórias do Padre Don Camilo e do comunista Peppone), Anne Frank, Conan Doyle, Maurice Leblanc.

7) “Todo mundo gosta, menos eu”: é o mesmo caso da pergunta 2. Em princípio, ninguém é indigno de mim como leitor. Não por falta de autoestima; é que um leitor também não deve se valorizar demais. Leitor tem que ser capaz de se misturar com qualquer gentona ou gentinha. 

8) “Uma indicação”: Raymond Queneau.





quarta-feira, 9 de março de 2016

4071) "Good Omens" (10.3.2016)



Produzir um romance escrito a quatro mãos por Neil Gaiman (o criador de Sandman) e Terry Pratchett (o criador de Discworld) é um pouco como conseguir uma turnê mundial de vários meses juntando duas grandes bandas de rock. A questão não é tanto se os dois têm talento, é como fazer para que as coisas que cada um sabe fazer melhor possam sobressair, e deixar impressão mais forte do que a impressão de tédio inevitavelmente produzida pelos longos períodos em que apenas uma faixa da audiência estará sendo satisfeita e subindo pelas paredes, e os 90% restantes do público estejam achando aquilo sem pé nem cabeça e perguntando: “Mas o que diabo isto está fazendo aqui, e com que função?”.

Este romance em parceria é uma recontação da história famosa de Damien (do filme Omen, a Profecia), o novo Anticristo, a quem cabia nascer na família de um cônsul norte-americano (deixando-o a um grau de acesso ao poder), protegido por um mastim infernal, e tornando-se o desencadeador do Armagedon. No romance picaresco de Gaiman/Pratchett, dá-se a obrigatória troca de bebês. Parece que nem a introdução dos clones no século 21 fez os roteiristas pararem de escrever sobre troca de bebês.  E o Anticristo vai parar numa família totalmente diferente.

O humor do livro, que envolve tudo quanto é categoria religiosa e hermético-oculta, é uma espécie de O Pêndulo de Foucault com material mais light mas com ambições dramatúrgicas mais amplas. Trata-se, afinal, do Fim dos Tempos, conduzido pelo Anticristo e pelos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Claro que há agentes do Bem e do Mal com variados motivos para sabotar o evento (“Não Vai Ter Armagedon!”). Por sorte, dois dos mais entusiasmados defensores da pecadora humanidade são um demônio (Crowley) e um anjo (Azirafale) que conviveram conosco tempo bastante para entenderem que a vida dos seres humanos de carne e osso é alguma coisa imensuravelmente mais complicada do que conceitos como o Bem e o Mal – vistos naqueles termos.

Li pouca coisa de Terry Pratchett, mas imagino que haja mais a mão dele do que a de Gaiman neste livro, cujos milhares de piadinhas satirizando a vida inglesa lembram muito a série Discworld. É uma forma leve de humor satírico e mordaz, como a série Mochileiro das Galáxias.  Foi também a estréia de Gaiman no romance, e certamente o ajudou a tentar a literatura. Nada de mau em ser roteirista de HQ, mas quando um escritor tem qualidades de romancista é sempre bom ver os resultados. Good Omens (1990) é divertido, mas Gaiman o superaria com facilidade depois, principalmente com Neverwhere, American Gods, Graveyard Book.








terça-feira, 8 de março de 2016

4070) Jorge de Lima (9.3.2016)



A prudência manda desconfiar de biografia escrita por amigo do biografado. Todo amigo é suspeito. Não porque tenda a “falar bem” do biografado. É porque teve envolvimento pessoal com aquilo. Já tem uma versão, e tem a sensação de que ela brotou de um consenso entre ele e o biografado. Todo amigo de um famoso, ao biografá-lo, ganha um pouquinho de tom de quem se julga meio dono dele, numa atitude de “eu sei disso, eu era amigo dele, estava lá e vocês não, vocês não podem questionar”.

É o que contamina às vezes livros como os de Robert Shelton sobre Bob Dylan, de Max Brod ou Gustav Janouch sobre Kafka, de Estela Canto sobre Borges, de Carlos Povina Cavalcanti sobre Jorge de Lima (Vida e Obra de Jorge de Lima, Rio, Correio da Manhã, 1969).  O autor era amigo de infância do poeta, ligado por laços de família, tiveram convivência constante na vida adulta. A vantagem é poder dar preciosas indicações sobre contexto, e confirmar detalhes. A desvantagem é ter de ferver no mesmo caldeirão a biografia escrita e a imagem pública que cultivava do biografado, seu compadre, seu parente até. Não digo isso para denegrir o esforço, mas para mostrar o quanto ele já começa em desvantagem, mesmo que pareça ser o contrário.

Jorge de Lima é autor de inúmeras coisas bonitas em poesia (O Grande Circo Místico) e prosa (nunca li seus romances), mas para mim é acima de tudo o autor de Invenção de Orfeu, uma espécie de Divina Comédia inspirada em André Breton e Georges Bernanos. Devia ser aberto ao acaso e lido, um poema por dia, aí quando o cara se tocar, enxerga o céu todinho.

Jorge e Murilo Mendes foram nossos grandes surrealistas, e pagaram caro por terem sido surrealistas cristãos, um oxímoro tão escandaloso quanto “dadaísmo greco-ortodoxo”. Resultado: em JdL e MM os cristãos se escandalizam com as libertinagens imagéticas do surrealismo, e com o eventual anarquismo erótico; e os surrealistas se entediam com a imageria cristã e as recorrentes fórmulas devocionais. Cristianismo e Surrealismo eram, quase cem anos atrás, talibanismos contrapostos. e não haveria de ser dois brasileiros que conseguissem fazê-los funcionar juntos, poeticamente. Pra mim, ambos conseguiram, mas quem sou eu?

Figura misteriosa, o Jorge de Lima de Povina, sempre solícito e generoso, ausente num “stream of consciousness” permanente. Um brasileiro que passou em branco pela política (deputado estadual em Alagoas, vereador no Rio), mas não pela Medicina. Há traços comuns de personalidade entre ele, Guimarães Rosa, Conan Doyle, outros escritores-médicos que se detiveram diante de um Umbral cruel e reconheceram haver ali um Corte místico entre dois mundos.



segunda-feira, 7 de março de 2016

4069) Karl May (8.3.2016)




Quando eu era pequeno eu via na vitrine da Livraria Pedrosa a coleção dele encadernada em marrom, e reconhecia títulos elogiados por Tio Cláudio ou Tio Stélio: Winnetou, Na Terra do Mahdi.  Karl May foi uma espécie de Julio Verne alemão, e há quem diga que era um dos autores preferidos de Adolf Hitler. Talvez não muito honroso para o autor, mas compreensível. May escreveu alguns ótimos livros de aventuras, e se eu os achei ótimos, por que qualquer outra pessoa não poderia achar? Não li esses dois aí em cima, mas Entre Abutres e Pelo Curdistão Bravio, de cujos enredos não recordo praticamente nada, eu tive na memória durante anos como os melhores dele.

Eram tribos de tuaregues no deserto, caçadores esquimós na Lapônia, árabes de metrópoles exóticas, pele-vermelhas na rota do Oeste. Karl May tinha a mesma mentalidade catalográfica de Verne, mas sua geografia era de gabinete e de biblioteca, onde ele escrevia mediante mapas e livros de referência. A verossimilhança ajuda, mas não é disso que se trata, é de ter histórias de fato aventurescas para contar. Além de Verne, May é do time de Rafael Sabatini, Stevenson, Kipling, até mesmo Conan Doyle e Wells, com histórias movimentadas de homens rudes envolvidos em missões, conflitos, perseguições, vinganças, libertações, ajustes de contas. Em ambientes exóticos, meticulosamente pesquisados e com muitas fichas para transcrever.

Enquanto lia os seus livros (que acho que saíam pela Melhoramentos) minha imagem dele era o rosto barbudo de Karl Marx, porque sempre que eu procurava um no dicionário dava de cara com a foto do outro. 

Já confundi também Orson Welles e H. G. Wells, até por conta das obras de ambos sobre os marcianos.  Os dois “quase parentes”, em 1940, se cruzaram numa mesma cidade (San Antonio, TX) e gravaram um programa de rádio (YouTube e arredores). O inglês pergunta ao colega mais jovem como é o filme que ele está realizando, Orson diz: “É um novo tipo de filme, com um novo método de apresentação, e alguns novos tipos de experiências técnicas, e novas maneiras de narrar um filme”.

Como seria Karl May filmado por Orson Welles?  Talvez não pelo Welles jovem, genioso, encharcado de hubris até o talo, que dirigiu Kane, mas por aquele senhor histriônico, charuto em punho, muito culto, grisalho contador de histórias “tongue in cheek”. Talvez um Winnetou do velho showman Welles virasse o Lemmy Caution de Alphaville, que em Godard é um espectro brechtiano do “polar” original.  Mas história de aventuras é sempre uma história que o leitor precisa levar a sério, precisa de plausibilidade (e cada narrativa coloca esse sarrafo numa altura diferente).